BARBARA YVELIN: O CÉU VIOLETA
É domingo. O azul do céu desta
manhã não tropeça em qualquer fiapo branco, tremendo céu tropical onde nenhum
sofá aguardaria os anjos de rilke.
Tenho de preparar para
amanhã uma aula sobre a ironia e a paródia mas perco-me em vagares, o meu pé
encosta-se ao da Teresa, que dorme ainda, volto a espreitar da cama o dia e o
excesso de luz cansa-me, desfibra-me, acomoda-me ao leito; decido continuar a
ler. Extravio-me à procura da noite, na esperança de achar na dobra de um livro
o atalho em que se perdeu.
Leio divertido que o jovem Fernando
Pessoa ao escrever o ensaio sobre o poeta vitoriano Macaulay terá concordado
com a admiração de um certo crítico que assegurava que a poesia deste era de
tal valia que «não era possível lê-lo deitado», comentando então Pessoa «que
vários críticos não só acham possível ler Macaulay deitados, como também é
muito fácil adormecer lendo-o».
Perfeito, penso, vou
apresentar amanhã este naco na aula.
Depois vem-me a dúvida, o
facto da Teresa continuar a sono alto apesar da luz do dia já se depositar
sobre os corpos como uma côdea pesada não se deverá à circunstância de ter lido
as primeiras quinze páginas do meu romance sobre a infância do Pessoa em Durban,
que finalmente encetei, após anos de dúvidas? Estará cilindrada pelo ritmo
pastoso da prosa, pelos inábeis labirintos que desatei a desenhar, eu que nos
chatos páramos já me amanho? Estará assim tão mau?
Hum, levanto-me. A Jade na
cozinha barra manteiga num pão. Olho para um pires com um redondo bolinho de
chocolate enfeitado por um peixe caramelizado na cobertura e meto-me com ela:
- posso comer este peixinho?
Responde-me a catraia num
desdém divertido:
- pobre papi, não sabe que aquilo
não é um peixe… - e sai para a sala, deixando-me especado.
- então se não é um peixe é
o quê? - vou eu interpelá-la à sala, no momento em que ela acende a televisão para
ver o Ziguezague.
- é a forma de um peixe… -
responde-me o fedelho, en passant.
Volto à cozinha, derrotado,
e dou uma dentada no bolo, só para morder a cauda do peixe. É insuportavelmente
mau, sabe a sabão.
Faço uma torrada e ponho-me
a pensar se também eu aos cinco anos distinguia entre as coisas e as suas
formas. É provável que sim, o que não saberia era enunciá-lo assim, como quem não
quer a coisa, com tal rigor aristotélico.
Fico inquieto com esta
propensão aristotélica da minha filha, acho mais possível sair um poeta dos
erros de Platão que do raciocínio de luminotécnico de Aristóteles.
Vou à porta do quarto espionar:
a Teresa continua a resgatar-se da leitura do meu livro numa qualquer paisagem
submarina.
O melhor é ir ouvir música,
só a música cura. Abro o armário, tiro um CD dos Opus Ensemble, meto-o no
aparelho e sento-me no cadeirão. Passa a Luna, ordeira e carinhosa como sempre,
dá a volta ao cadeirão e – vá lá saber-se porquê, teria também ela lido o começo
do meu romance e estaria a vingar-se? – toca-me com um dedo o alto da cabeça e
comenta: Pai, estás mais careca aqui!
A música arranca. Aos
primeiros acordes sei que a viola de arco me vai dar o ânimo, a seta para o dia.
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