quarta-feira, 29 de agosto de 2012

ARRUMOS E DESARRUMOS



Escrevo um poema (uma oração) para a exposição de pintura de um amigo peruano que só pinta cobras e ao enviar-lhe o texto por mail identifiquei assim a coisa: CABRITA/COBRITAS, dando-me depois conta da homofonia e do diabólico parentesco que ali gizei. Confesso que fiquei cinco minutos pensativo. Para mim, que acredito no destino das palavras, esta coincidência não me parece uma Graça.
 
Mas como tudo tem um lado de sombra e outro luminoso, reencontrei duas amigas de infância, duas irmãs, por via do FB. As manas Graça, duas garças que quebram a monotonia de qualquer céu. Há quarenta anos que não nos víamos. Uma coisa impensável há dez anos atrás.
Estão intactas (são como dois vasos fenícios encontrados nos gelos dos Alpes), ao contrário de mim que sofri várias arrombos numa fisionomia que me entretive a devastar.
Escreve-me uma delas: «Também te felicito pela tua carreira. Mesmo antes de me teres enviado esta mensagem consultei o teu perfil e pesquisei referências sobre ti. Encontrei alguns livros e algumas coisas que escreveste. Escreves muito bem, embora por vezes algo para além da minha mente mais familiarizada com as matemáticas e a informática.
Não me espanta o teu percurso, não eras um rapaz vulgar (nem a tua irmã) pelo que recordo. Destacavas-te pela inteligência e singularidade crítica.»
A que me faz assim o encómio é docente investigadora em engenharia, no Técnico. A outra não sei, ainda mas também me parece muito bem. Ela desconhece a particular inutilidade dessas minhas famigeradas inteligência e singularidade crítica e como elas só me têm trazido dissabores, em todos os domínios da minha vida, a começar pela total desadequação para “as artes de anzol” do amor, ilustrada pela inabilidade que me fez engolir inteira a paixoneta que tive pela irmã e que me caiu como uma colher de prata no estômago, uma colher virgem de açucares e vitaminas.
Mas o que me interessa agora referir é que éramos todos pobres, que os nossos pais faziam imensos sacrifícios para nos proporcionarem o mínimo de condições que nos permitisse não adivinhar a que ponto éramos pobres, e acabámos todos leitores e com uma boa formação, a desenvolver actividades e pertinências nas áreas por nós escolhidas, o que nos tornou, à maneira de cada um, cidadãos activos. O nosso bairro de infância era tão problemático que na adolescência e na entrada para a idade adulta dezasseis dos miúdos da zona morreram, vítimas de overdoses e de Sida. Destapei um pouco disto no meu livro de contos, As Cinzas de Maria Callas.  

Ontem estive numa reunião na Escola de Teatro, uma reunião de professores para ouvirmos as reclamações dos alunos. Eles também são pobres, tão pobres como nós éramos, mas algo nos distingue e que tem a ver com o tempo em que se vive: estes jovens têm um enorme problema de escala. Nós éramos mais cientes da vastidão da nossa ignorância e do que tínhamos de trabalhar para superar as dificuldades, o que nos dava humildade e incutia a curiosidade. Estes vivem na era da comunicação e confundem informação com saber, estando confortavelmente sentados sobre as suas suficiências, sem o menor sinal de autorreflexão.

Na semana passada tive uma discussão na aula em torno de Shakespeare. Um dos alunos teimava comigo que Shakespeare devia ser pouco conhecido no mundo, ao contrário do que eu dizia, porque não era conhecido em Nampula, a cidade em que ele habitava até vir para Maputo estudar na universidade – e a autoridade do professor não lhe bastava para aceitar a informação.
Outro (outra) dizia-me que o que estava por trás do sucesso de Shakespeare era apenas uma questão de cunhas e de marketing e que qualquer um lá chegaria, em havendo sorte. Logo, para quê estudá-lo?
E o trágico é que nenhum deles – num curso de teatro - está disposto a admitir que a paixão e a leitura têm de andar a par para a progressão do crescimento, naquilo que nos motiva; estão ali única e exclusivamente para fazer um curso com o menor esforço possível – a vida é outra coisa. Imagino-os daqui a 30 anos a encontrarem-se casualmente no Facebook: estarão todos na mesma cepa torta e nenhum deles terá em casa um volume com as obras completas de Shakespeare, apesar dos vários Land Rovers na garagem e de uma carreira como apresentadores de “reality shows”. O mundo é que estará mais repleto de “feios, porcos e maus”.  

Aquilo que para mim e as minhas amigas foi um acicate, um estímulo, para interiorizarmos o conhecimento do mundo de modo a livrar-nos das carências que implicitamente sentíamos à nossa volta, para eles não existe porque têm a informação à mão no Black Berry e tudo lhes vem do exterior. É uma lamentável armadilha.

 
Descobri o método para avançar sem dúvidas nem receios na escrita do meu romance sobre a infância de Pessoa. Mais uma vez, lendo poesia – essa caixa de bugigangas reluzentes e inúteis.


Vou-me entregar a uma manhã de sáurio, indolente, com poucas tarefas: pôr as miúdas na piscina e entregar na editora as provas do meu livro «Para que servem os elevadores – e outras indagações literárias», um livro de pequenos ensaios sobre literatura. O título chegou-me de uma evidência que só conhece quem habita nos trópicos: mais de metade dos elevadores dos prédios ou não funciona de todo – sendo um objecto de decoração, às vezes um contentor de lixo - ou está condicionado a horário. É o caso do meu, que só funciona das 12 às 14h30, e das 17 às 23h. O resto é a penates, nove andares no meu caso. Aos 53 é um bico-de-obra para tanta inteligência e singularidade crítica. Estarei ainda a tempo de me concentrar no fito de enriquecer?

2 comentários:

  1. “Para que servem os elevadores” é um título muito sugestivo. Os elevadores de Maputo, quando aí estive (95 – 98) tinham vida própria: paravam aleatoriamente em qualquer piso e subíamos ou descíamos as escadas que faltavam, para além de não acertarem nunca com a abertura, pelo que, ora saltávamos, ora amarinhávamos, dependendo se parava mais acima ou mais abaixo da porta do andar.

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