Recomecei as aulas. Estou entusiasmado pelo programa que arranjei para o semestre de Dramaturgia, onde vamos trabalhar em torno de duas tragédias de Shakespeare, Coriolano e Macbeth, e duma tradução colectiva de Robert Zucco, de Koltés.
Desta vez, se acaso os alunos não forem receptivos (espero que sim), a preparação das aulas servirá também para escrever uma série de notas sobre o bardo que talvez possa depois desenvolver num texto (- eis a grande liberdade dos 50, já nos permitimos o descaro de dizer que se calhar podemos escrever qualquer coisinha sobre o bardo sem desfalecer imediatamente de vergonha), o que me poupará a qualquer perda de tempo ou estímulo, fazendo-me sobrevoar uma eventual reciprocidade ou o menor afinco dos estudantes.
A adaptação fílmica de Ralph Fiennes de Coriolano é o catalisador que autorizará desdobrar os diversos tipos de abordagem:
- análise da adaptação de Shakespeare em relação ao texto de Plutarco;
- análise da adaptação do filme em relação à peça de Shakespeare, que traslada a acção para a actualidade;
- análise da découpage e das marcações cinematográficas em relação ao ethos das personagens.
Como somos cinco, eu, a monitora, e três alunos, isso proporcionará um espaço de concentração e uma maior dedicação aos exercícios.
Estou decidido a esgotar um leque razoável de referências bibliográficas possíveis sobre as peças, e a produzir depois qualquer coisa. É a única forma de me entusiasmar e de não me sentir insatisfeito no fim, pois dar aulas é-me cada vez mais penoso.
Preciso agora de um plano extra, igualmente sugestivo, para as aulas de Guionismo, onde, alunos ainda menos empenhados em estudar, se deleitarão em tanger na minha voz rouca o canto do cisne.
Escreve Northrop Frye, na sua introdução ao seu livro Shakespeare e o Seu Teatro: « É-nos permissível pensar que, se tivéssemos sido Shakespeare, não teríamos escrito uma peça anti-semita como o Mercador de Veneza, nem uma peça sexista como A Megera Domada, nem uma farsa grosseira como As Alegres Comadres de Windsor, nem um melodrama brutal como Titus Andronicus; o que equivale a dizer que nós teríamos utilizado o teatro para fins mais altos e nobres. Uma das primeiras coisas que é preciso compreender é que Shakespeare não utilizou o teatro: ele tomou-o tal como era na sua época e aceitou-lhe todas as condições. É um pouco por causa disso que nós o consideramos agora como um tão grande poeta.»
Ontem mesmo tinha lido uma observação similar de Mário Faustino sobre Jorge de Lima, um poeta brasileiro extraordinário que no monumento barroco A Invenção de Orfeu atinge um dos picos da língua portuguesa e um dos poucos livros de poemas do século XX que tem a medida e o tom do epos.
Cita Faustino um excerto de um poema de Lima:
«Então Margarete tatuou o corpo
sofrendo muito por amor de Deus,
pois gravou em sua pele rósea
a Via-Sacra do Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a ofendeu jamais;
e o leão Nero que já havia comido dois ventrílocos,
quando ela entrava nua pela jaula adentro,
chorava como um recém-nascido…»
E escreve depois:
«Note-se que mão é bem a intenção do poeta, nesses versos fazer humor. A intenção é séria – e ingénua. Repetimos: sem essa délivrance do grotesco, sem essa intimidade com o absurdo, sem essa ingenuidade no approach do convencionalmente ridículo, Jorge de Lima não teria chegado ao plano livre, à ampla medida, ao “barroco” da Invenção. São preços que alguns poetas estão dispostos a pagar, outros não…».
Quer dizer que a Grande Arte admite a contradição, a incongruência, o mau-gosto, o doce e o amargo, os desequilíbrios interiores, como estratos na bebinka da obra. Há uma medida em que se está para lá do “bom gosto”, como “para além do bem e do mal”, desenhando outro tipo de arquitecturas, nas quais a audácia e o comedimento não podem emparelhar pois um engaste e um cavalo de corrida não são comparáveis e acionam pontos de vista muito distintos.
«O tempo com o seu pêndulo de oceano»: um admirável verso de Jorge Lima que escrevi no quadro hoje, na primeira aula, deixando a charada aos alunos: onde está o pêndulo?
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