domingo, 5 de agosto de 2012

A LITERATURA CONFESSIONAL E AS PISCINAS PRIVADAS

                                                            FRANCISCO BRONZE

«Tenho uma memória autodestrutiva. Suprimo à medida que é preciso os elementos da minha vida pessoal e profissional. E não chego, por conseguinte, a reconstituir os factos…», diz Levi-Strauss. Eu sou igual, sem tirar nem pôr, talvez por isso uma boa fatia dos livros que escrevo incidem na memória, que tenho que reinventar - pois todos temos necessidade de algo que contrarie a nossa propensão dissipativa, não é?
Por isso farto-me de rir quando dizem que os meus livros de ficção são autobiográficos.
Na contracapa de As Cinzas de Maria Callas avisei que os contos haviam sido escritos sob influência do Amarcord – que recriam atmosferas da infância e do meio social em que estava inserido, a periferia de Lisboa na década e meia antes do 25 de Abril e logo após, para entrar em grandes delírios de fantasia.
Isto é, 90% do que lá está não se passou, foi inventado, e só 10% é que parte do vivido, ainda que transfigurado.
Contudo, foi recebido por amigos e familiares como se estivesse a trair algo que, na verdade, nunca se passou.
Aparentemente, o facto de me ter atribuído o papel de suposto arauto, ou testemunha, imprimindo uma narrativa a uma infância vivida nas mesmas circunstância ou permeada por acontecimentos sociais comuns, criou um efeito de verosimilhança por cujo crivo os meus conhecidos – que na generalidade nem aparecem, ou se sim, com nomes distintos e alterações caracterológicas - se sentiram julgados. Imaginemos todos aqueles professores figurados no Amarcord a meterem em tribunal o Fellini por se sentirem caricaturizados.
Outra hipótese é de facto os meus conhecidos não se lembrarem de todo da sua infância ou terem sobre ela tal inconvencimento que se agarram ao plausível como verdadeiro, a ser reivindicado.
Mas no essencial, para espanto meu, muitos, demais em meu parco entender, acreditaram que naquele feixe de histórias se reflectia a minha história pessoal.
Isto, para explicar que nunca sabemos como vamos ser lidos, o que a leitura desperta nas pessoas. 
Em 1893, escrevia a baronesa Staffe: «É por generosidade que se deve evitar falar de si, ainda que seja para falar mal. Deve-se impedir o máximo possível a intervenção do seu eu, pois este é quase sempre um assunto que incomoda ou entedia os outros». Cita-a Philippe Lejeune num clássico sobre a “literatura confessional”, Le Pacte Autobiographique. O livro da baronesa era um desses manuais de bons modos que hoje voltaram a ter êxito, e a sua asserção é o exemplo dum decoro e duma hipocrisia que fez regra demasiado tempo. Falar de si (como se houvesse outro lugar de onde falar, como se a psicanálise não iluminasse pelo negativo o que cada um cala de si) era sintoma de mau gosto. Até na minha infância de garoto pobre, numa periferia de Lisboa, isso era lei. Felizmente que o 25 de Abril rompeu com essa tirania dos bons modos. 
Em mim, os bons modos (graças a Deus, que é herege) foram destruídos pela leitura de Henry Miller, Céline e Michel Leiris.
O segundo passo foi descobrir que o Miller contava os mesmos episódios em vários livros sob ângulos absolutamente diferentes, como se a sua captura do passado só fosse possível à medida que o inventava. Nunca mais consegui traçar uma fiável linha de fronteira entre a fantasia no Borges e o confessionalismo em Ruben A. e a única coisa que me importa é o modo como está narrado.
O que distingue a prosa de Miller da de Bukowski, por exemplo, é a galvanização devaneadora, polifónica, do primeiro contra a funcional pobreza narrativa do segundo; de resto ambos trabalham a partir dos possíveis que a leitura do quotidiano proporciona. Encontra-se o mesmo declínio ao compararmos Cabrera Infante com Gutiérrez: a imaginação do primeiro conhece o seu pastiche no segundo e nada mais.
Ou seja, a única coisa que por vezes me cansa na “literatura confessional” é a patente preguiça de muitos autores, que fazem da auto-complacência piscina privada.

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