O calor morde os corpos, torce-os como
panos húmidos.
Para me escapar ao seu nó, entro na
livraria por um pouco de ar condicionado. Acabo por comprar Museu das
Janelas Verdes de João Miguel Fernandes Jorges, um dos raros com quem
aprendi que não se pode ensinar nada, apenas é possível insinuar e aguardar que a vida e a eclosão da curiosidade façam o resto.
Sento-me no canapé de palha da
livraria e, aproveitando a trégua refrigerada vou petiscando em dois ou três
livros, releio o poeta. O que mais me perturba e fascina neste poeta sem
apelidos são os seus incríveis jogos malabares com as cartas do Tempo.
Ao arrepio da maior parte da poesia
hoje dominante, que usa e abusa de um só tempo verbal, coincidente com o do
poema, e se concentra num episódico quadro temporal, Fernandes Jorge faz da
História um harmónio e convoca a longa duração na tessitura dos seus poemas,
fazendo dos antepassados seus coetâneos.
Apesar da precedência poder arrepiar
Joaquim Manuel Magalhães, o seu cúmplice de uma vida e principal exegeta, uma
observação de Jordi Garcia sobre Pere Gimferrer, assenta como uma luva a João
Miguel: «a associação automática, a simultaneidade de tempos históricos, as
sequências de imagens intensamente visuais ou as citações literárias implícitas».
Cite-se:
«L. A é um pequeno café em
Hobbemastraat.
Foi aí que conheci o fumador
de Mythos.
Eu estava a ler a notícia da
infestação
de caruncho que vitimou a mão
mumificada
de S. João Kemble.
L. A era um café de lamentos
quando ele
chegou. Logo ficou um castelo
renovado
frente ao jubiloso clamor dos
exércitos
- latas e ferros e cor e a
festa dos
cavalos e dos cães, andando à
volta
pedindo palha e osso»;
Numa explosiva quantidade de poemas, a
montagem de eventos organiza um fluxo que desengancha os eventos da sua
cronologia para os “resgatar” numa nova sincronicidade, que o texto estipula, e
que devemos – este é o engodo – ler como empírica.
“A
arte mata o tempo. O tempo nada pode matar, diz a arte. A arte mata o tempo»,
escreveu William Carlos Williams, e talvez se ancore aqui a ligação de João
Miguel às Artes Plásticas: um quadro situa-se no espaço, apela à percepção
visual que engloba num instante a totalidade da obra sem antepor a lógica
discursiva nem supor uma sucessão temporal. O movimento, as linhas, as cores
instauram uma imediaticidade que emenda o andamento do tempo.
Por outro lado, com João Miguel, o que
é surpreendente num poeta no qual transparecem sempre as marcas do real, não é
invulgar o poema desarticular com um arame a rígida algema da semântica, a fim
de realizar a conexão impensada a que toda a palavra, por osmose, se destina.
Neste passo, é um poeta que se
descentra como poucos, que vai do erudito à cultura popular, da mais elegante
alvenaria verbal ao uso do calão, com a facilidade de um miúdo que monta os
corrimões da escada, lance a lance.
Como é que isto se organiza no tecido
textual? Esse é o fascínio da sua leitura e o seu intransmissível, inigualável,
estro. João Miguel, em Portugal, é único nesta técnica de montagem que supera
em muito as técnicas de cut-up pois instaura continuamente nexos lógicos
imprevisíveis que salvam os objectos da sua (efémera) significação (inércia)
temporal, a jusante, ou da sua aura irracional, a montante, resgatando-os ao
seu erzats, a fim de os dotar de uma presença transpessoal:
CAFÉ PACIFIC
Uma ferida rasga a pele e
muitas vezes infecta
e deita sangue.
Deus chegou naquela manhã de
junho
num carro de quatro cavalos.
Os estores de fasquias de madeira
davam à rua
uma tonalidade de oriente.
«Parece-se com aquele
jornalista da televisão. Você
conhece?»
«Não sei quem é.»
«Ele até publicou um romance.»
«Nunca o li. Mas esteja
descansado, irei comprá-lo
um destes dias.» A árvore sem
uma única folha
alongava-se desde os sinos do
mundo.
Sombra que sustenta uma luz
vazia.
O solitário corvo desceu sobre
o ramo seco.
(in não é certo este dizer, 97)
Na
realidade, aquilo que em JMFJ parece provir de uma técnica apurada de cut-up
assinala outra dimensão, similar ao estado que Daryush Shayegan designa como
«patchwork», uma confluência dos diferentes espaços heterogéneos que nos
constituem e que não se situam no mesmo plano histórico e cognitivo: «Chaque parcelle représente un niveau de conscience, comme si, par un
processus sans doute difficile à cerner, on accumulait en soit pêle-mêle tous
les âges de l’humanité.» (27)
Cremos, por outro lado, que JMFJ, de
ampla cultura humanista, aprendeu tudo com Nicolau de Cusa, que faz confluir
possibilidade e actualidade.
Ou, para os que receiam as
aproximações à lógica infinita dos místicos, ensaiemos outra hipótese, menos
pia: Michel Serres lembra-nos que o tempo não é uma seta mas um tecido com
várias dobras, como um lenço. É o que o filósofo designa por «percolação». Se num
lenço dobrado, e no qual as diversas dobras representam as três dimensões do
tempo (passado, presente e futuro), espetarmos um alfinete cria-se um novo tipo
de vizinhanças, de raccords, que re-activa em cada presença uma actualidade
múltipla e inesperada.
É este mecanismo que ocorre nos poemas
de JMFJ, que costuram (ou encastram?) tempos, conceitos, objectos, e
incidências humanas numa sequência improvável, sempre nova e legítima. Como
acontece também nos melhores momentos de Ferreira Gullar – penso nas últimas
dez páginas de Poema Sujo, por exemplo.
JMFJ realiza verticalmente, no
trabalho sobre as dobras temporais, o que para Fernando Pessoa é um tracejar
horizontal, no espaço, disseminando pelo palco os seus dramas em gente.
E fá-lo, a meu ver, com duas vantagens,
i) o tempo verbal dos seus poemas é riquíssimo e mais próximo da
coloquialidade; ii) a poesia, na sua trama de materiais heteróclitos,
ganha em ambivalência, posto que, a um tempo, se deixa ler como superação das
particularidades individuais, como pulmão de um avatar simbólico – e, neste
item, JMFJ é um dos lídimos representantes de um espírito português, com
António Vieira, Garrett, Pessoa, Barahona, e poucos mais – e como vestígio
insofismável de um ponto de vista singular na tapeçaria da duração.
Raros são os poetas que sabem
articular no poema esta percolação do tempo, que no fundo é uma cicatriz
transversal a vários estratos do tempo e do ser. Herberto e Ramos Rosa (às
vezes) conseguem-no a um plano que os aproxima do «imaginal».
João Miguel - que, por tonalidades e
vias absolutamente diferentes, se aproxima do plano dos anteriores por ser um
neoplatónico - escolheu como écran transpessoal o campo da História e modela os
poemas numa hibridização, como antes Pound.
Nele, todas as circunstâncias,
inclusive as mais triviais ou anedóticas, podem ser relançadas no espaldar da
Categoria; o que, outro feito que o distingue, sem lhe retirar gravidade,
espessura metafísica, não invalida em nada os atributos lúdicos:
UM BARCO NA MANHÃ
De repente pareceu-me que
estava
identificado com o mecanismo
dos estores do meu quarto. Era
uma dessas estreitas
lâminas e o meu espaço
engendrava os espaços das
outras lâminas
e o que na verdade existia era
a multiplicação
dos espaços, cada um deles
continha
implicitamente, todos os
demais. Fui,
nessa manhã, estreitíssima
lâmina, alumínio
que guardava todas as outras
lâminas – espaço
entre os espaços, todo o
espaço
eu ocultava, como quem passa o
fogo entre dois fogos, um barco
na manhã retrocede sobre as
ondas – todas
as lâminas do mar.
(in, não é certo este dizer,
1997)
E que outras Categorias não teme João Miguel
deslaçar?
Talvez as que se despontam neste apontamento de
Simone Weil: «O nosso desejo cruza aqui o
tempo para animar, atrás dele, a eternidade, e isto ocorre sempre que sabemos
converter o que sucede, seja o que for, num objecto de desejo».
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