Há criaturas que parecem ter os nove fôlegos de gato
multiplicados pelas cem patas do famoso artrópode miriápode, fadadas
para complicar a vida aos demais, apesar da sua ser o simples, condicionado,
destino de um rio entre margens; pessoas capazes de trilhar simultaneamente uma
e outra margem do rio, segundo o ritmo do coração. São os guardiões do susto
– aqueles que com Shakespeare sabem existir mais mistérios entre o céu e a
terra do que os que ousamos imaginar, e se entretém a cartografá-los.
António Augusto Melo Lucena Quadros (1933-1994) - aliás João Pedro Grabato
Dias, aliás Frey Ioannes Garabatus, digo António Quadros “Pintor”, “fortuito”
companheiro de estrada de Mutimati Barnabé João; para além de argumentista (de
«O Senhor Ventura», para José Fonseca e Costa, projecto infelizmente nunca
realizado); também conhecido como artista gráfico e pedagogo, antes e depois de
ser apicultor, reputado conferencista sobre a abelha africana e «descobridor»
da Rosa Ramalho; tudo isto incubado no entreacto de privar com incubos e
súcubos da língua como o Herberto Helder, o José Afonso, o Eduardo Luís, o José
Forjaz, o Eugénio Lisboa, o Rui Knopfly, o José Craveirinha e a Amélia Muge, e
de escolher Moçambique para adopção, horizonte e trato - era uma criatura assim: mais dada ao
arquipélago e ao rizoma do que à raiz, com o mistério encravado nas clavículas.
Uma daquelas criaturas diante das quais o país fica aquém,
pois, para glosar um dizer de Camilo José Cela (sobre um país bastante maior
que nosso), «este país é tão pobre que não dá para fazer-se duas ideias acerca
da mesma pessoa».
António Augusto Melo Lucena Quadros, repita-se, foi um
espírito renascentista, dos que abominaram a especialização (tendo-a) pelo
exclusivo fito de desatar múltiplos saberes para os devolver re-atados,
i.é re-ligados a redes conceptuais de outra amplitude. O seu era um nomadismo
integrado que visava, por via de uma prática polifacetada, alargar os meios
expressivos.
Partia tudo isto de uma curiosidade oceânica, só igualada
pela sua propensão pedagógica - tornaram-se famosos em Moçambique os seus
manuais técnicos e propostas educacionais, que abarcavam áreas tão díspares
como o solo-cimento, a reciclagem orgânica, a gráfica, o cinema de animação ou
a óptica. Vocação prometaica comum a quem não se evade no comércio com os
deuses, nem ilude na função exortativa do seu canto a tergiversação política:
cidadão de uma só dentada, em estuário.
Um criador na esteira desse Corto Maltese que rasgava na
mão a linha da vida quando esta não lhe parecia conforme o desafio e a
desforra.
Eis a personagem.
Em 1968, o júri do Prémio de Poesia do Concurso Literário
de Lourenço Marques, que contava com oligarcas intelectuais de algum vinagre,
como Rui Knopfly e Eugénio Lisboa, fica bestificado com a qualidade de um texto
que atalhou todas as dúvidas. O prémio nunca foi levantado e só dois anos
depois dá à costa o primeiro livro do seu autor, 40 Sonetos de Amor e Uma
Canção Desesperada, assinada por João Pedro Grabato Dias. Foi evento que
voltou a desconcertar.
Como escreve, na efusiva nota de badana, Eugénio Lisboa,
logo neste primeiro livro, está-se em presença de uma «voz singular, ulcerada
e mitológica, ensimesmada, onírica, ironicamente realista, brutal, descabelada
(...)» e de um engenho traduzido n’ «uma extraordinária “fauna léxica”
que a um tempo nos subjuga e desorienta...». Repare-se como a enumerativa
adjectivação de Eugénio Lisboa, a quem não faltava cabedal teórico, realça de
imediato a inaptidão das habituais grelhas de leitura perante um caso como o de
Grabato Dias.
No título, por exemplo, é evocado o famoso livro de Pablo
Neruda, mas apesar do voluptuoso domínio das formas convencionais (o
soneto) e de uma confiança no poder da linguagem só verificável nos românticos,
Grabato Dias entrega-se a um trabalho desconstrutor das inércias poéticas que
está mais próximo da erosão «anti-lírica» de Nicanor Parra (um chileno que
ergueu a sua obra “contra” Neruda) que do sentimentalismo e da hospitalidade
comuns à densidade elegíaca do autor de Canto
General.
Grabato, com a naturalidade de quem se persigna, cria
neologismos, espanta e travestiza a sintaxe, carnavaliza a língua, tem verve
q.b. para vazar baleias no buraco da agulha, entrelaça provérbios com
experimentação, sem nunca perder de vista a rima e a métrica. Veja-se Guerrilha
em Horas Extraordinárias:
«A mulherinha estava a
pedir pega-me
naquele olhar de corna
mansa, e então
fiz das tripas menores
um coração
embrulhei-o em luxúria
e num béguin
impetuoso e urgente,
qual salame
perverso a mugir
trinca-me glutão
abalei a voar no avião
rotativo daquele olhar.
Eu chame-me
cão gravata se não
valeu a pena!
Ó licor da vingança, ó
bruta cena!
Tinha, enfim, sob a
espora, sob a mão
soba espúrio, soba
ex-puro a esposa
grata do chefe, e sob a
esposa a musa
ingrata dum tinteiro da
nação».
O poeta, como assinalou Eugénio Lisboa, surpreendia
«sobretudo aquela espécie de crítica que ainda vive agarrada ao sentido
literal, filológico, do texto». De facto, não se mete facilmente o escalpelo
num texto como Introdução a um pedido de asilo poli ético:
«Olho zanaga olhizaino
e duro
labrusco joalheiro de
praguedo
inventa o oligarca o
medo. O medo
guarda o medo, e o
escuro esconde o escuro.
Apreensão de apóstata prematuro
romeu repeso ansiando o
ledo
quieto canto matutino,
medo
urna do medo, eis-me
(...) ».
Este gosto pela fantasia formal, petisqueira e gongórica -
com um apego ao vocábulo raro que traz à memória o Eugénio de Castro dos
primeiros anos, ainda que em Grabato sejam exponenciais o sentido rítmico e a
dimensão lúdica ( havia o surrealismo de permeio) - confirmar-se-ia num livro
posterior, Vinte e Uma Laurentinas, de 1971, de métrica
vária e acentuada derrisão política:
A lula compartilhada
«Um marrequinha das
direitas
comia lulas com um
ambidextro
da oposição. Ó pus
(cisão
de expectorado rasto no
clima
do ódio) como saber-te
útil
sem provar-te fecundo?
e saboroso?
Comiam lulas, pois, e nos enganos
com que se temperavam
no manjar
diziam um ao outro mil
enganos
trocavam galhardetes e
rosmanos
com esses ares
ibérico-hindustânicos
que os portugueses têm
a cear (...) ».
Vinte e uma «laurentinas» (é um supor) buriladas à medida
que cada uma das cervejas homónimas era regurgitada pelo poeta (como se fosse
uma métrica), e dois “fabulírios falhados”, à conta de dois conhaques sem
parquímetro. O poeta assume-se como «impuro», inquinado pela matéria (o malte,
por exemplo) com que o real se dá a ler, o que inclusive produz a paródia, de
inspiração «pop», com que em 40 e tal sonetos de Amor e Circunstância se sublinha a afinidade entre os poetas
órficos e os heróis de banda desenhada (outra modalidade da circunstância
em que o “tempo real” se consome):
lá
mais para o verão
ou
programa
de lucky luke
para
setembro...
«Luciferinos, quatro irmãos daltónicos
urram no sangue espesso que percorre
campos e vales do meu ripanço. Morre
inviolada toda a tarde e os órficos
andarilhos sibilam I am sorry
no pejado balcão. De olhos alcoólicos
os chacais uivam slogans patrióticos.
Soletro-me no zinco: motel story.
Ortugal
City: morte às quatro rodas. (...)»
Era esta
a cadência luciferina do poeta. E nesta cadência percebia-se que,
a)
em Grabato Dias, a ironia é obstinadamente transideológica,
b) o poeta visava incomodar pela apalpação do
ethos do outro ( - e lembremos de que falamos de antes do 25 de Abril de
74).
Contudo, este lado truculento de calar com o riso («humor,
minha automática secreta»), cultivado por Grabato - na casa comum do Abade
de Jazente ou de O’ Neill - não lhe esgota o engenho.
Os verdadeiros poetas esgaravatam a língua, até ao
desmame. E a destruição da língua é nestes tão importante como a sua
(re-)elaboração, ainda que a memória arraste continuamente consigo resíduos
parasitários, formas que é preciso abolir. A obra destes autores assume-se
então como uma rede fluvial que, vista de helicóptero, à boa maneira
borgesiana, desenha os contornos de um rosto.
Enquanto António Quadros pintava e apicultava e se
entregava à agricultura, ou às aulas que nunca abandonou, Grabato Dias
alimentava um outro veio poético: longas odes, de versos densos e reflexivos,
que se estruturavam em estrofes centenares (como diria o Camilo),
dobrando os rins à recepção das suas primeiras obras publicadas e às
“novidades” formais que estas haviam introduzido.
O Morto e A Arca, «odes didácticas», que o
poeta fez publicar em 71, voltam a pôr de borco os numismatas literários. Como
classificar um torcicolo tão profundo na imagem estabelecida pelos livros
anteriores? Eis o «quid» da questão: a força lúdica com que, naqueles, se
desmantelava a palavra e se reduzia à paródia a enunciação discursiva - como se
o poeta estivesse investido do modus operandi de um engenheiro naval (um
Álvaro de Campos “bricoleur” e profeta do Faça-você-mesmo)
- não se esgotava no ardil técnico e adaptava-se, afinal, a outros territórios
semânticos e discursivos, de mais farto caudal. Como se as cabriolices do
afluente tivessem reencontrado o leito da matriz.
O Morto é um longo poema sobre a experiência da
morte, abordada com «o pudor das coisas demasiadas» (oxímoro que o poeta
repete em vários livros):
«Como o morto nunca nos
diz nada
vem daí o extremo
penoso da sua presença
(...)
Colam-se-nos com o
suor, à ilharga
e um corujão sagrado de
penas de seda, aloja-se
perpetuamente em nossa
nuca.
O pio que nunca chega é
o castigo
(...)
Somos muitos, somos
todos um
mil patas de reverência
(...)
Passa a
revoada matinal das rolas
E os
olhos de todos seguem-nas, numa alegria sem contexto
até se arrependerem
na orla do pinhal e no tossicar do cura.»
(pág 29)
Muito distante da pirotecnia vocabular dos livros
anteriores, o poema desencadeia numerosas associações mas desta vez mais
existenciais que estéticas. A ode espraia-se como uma onda que surfa
numa lenta reflexão, visando claramente um «pathos», pois ( e por aqui se
incute o didactismo da ode) só no reconhecimento dos limites (que a
vigília sobre a ausência do morto desperta)
reaprendemos a exumar as emoções devidas àqueles que por breves estações são os
condóminos do nosso espaço biográfico e que a luxuriante despersonalização
pelas palavras alienou. Mesmo a noção
do ritmo que nos ejecta as palavras é, nesta acareação com o morto, posta em
causa:
«Sofrem que lhes fale
sem brevidade. Assim é preciso.
Apenas o raio é rápido,
apenas o acabar, o cindir
dos elementos é
misericordioso embora não fugaz.
Fugaz é o lento subir da sequoia em mil anos
fugaz será o amadurar do cristal de rocha, e
eu não diria
ser fugaz um tampo de galáxia se o não
soubera.»
Vemos assim como a presença da morte suscita uma nova
cartografia para a recepção dosvínculos e para a oleosa exterioridade do mundo.
Da morte individual, da dor privada, passa-se, entretanto,
para o castigo colectivo por decreto húmido em A Arca.
N’ A Arca (de Noé), uma suposta tradução do
sânscrito ptolomaico com versão contida, Grabato só larga o espaldar depois
de trezentas estrofes regulares, de uma densidade conceptual que deixam o
leitor exaurido. E alvitre-se já: A Arca é um dos esteios da poesia
portuguesa do século XX, um dos raros poemas de fôlego portugueses onde a
poesia se aproxima de uma gnose, de uma literatura concebida como anamnese.
Em versos cadenciados por um ritmo musculado que raramente
“desborda”, forceja-se – na primeira metade -
um canto “adâmico”, uma espécie de glossologia que propõe regular a vida
no seio de uma natureza inaugural varrida pelos caprichos dos deuses e pelo
increpar dos elementos. A voz nomeia o mundo e (re)cria uma realidade
encantatória, que vai revelando o seu desígnio à medida que mundo e escritura
coincidem.
Interrogava-se Octavio Paz num dos seus últimos livros, La
Otra Voz – Poesía Y Fin de Siglo, a propósito de longos poemas narrativos,
se existe uma poesia puramente terrestre, não contaminada pelas intervenções
sobrenaturais e as genealogias divinas. Responde Grabato, na estrofe CXI:
«(...) vos quisera dizer tudo o que sei.
Falei do alto ora direi do chão
vivente que suporta o nosso peso».
É nesta altura que, depois de evocar a influência das
estrelas, Noé começa a elegia ao Sol e ao mundo material que o astro banha. E
se há assomos de neo-platonismo:
« Toda a sabedoria está em ter-te (ao sol)
dentro da pele com força, igual da força
com que fora da pele tu te derramas.»
(CXX)
o poema prossegue numa toada que se concentra no valor da
experiência e nos vínculos à terra e à sua lei.
N’ A Arca, por conseguinte, aquietam-se os lapsos
diagnosticados por Paz na poesia narrativa de inspiração épica, podendo-se
dizer que, pelo contrário, o Céu e os seus divinos avatares, têm neste poema
uma correspondência directa com o “repugnante absinto” que Lucrécio exacrava em
De rerum natura. Aliás, assinala-se
outra importante semelhança com o poeta romano, para além da “transcrição” das
leis da natureza: uma igual resistência ao religioso em contraponto com uma
mesma abertura ao numinoso. Grabato Dias chega explicitamente a contrapor aos
deuses a ola, imagem extremamente ambivalente no seu conteúdo:
reportará a uma panela de barro e ao ofício de conformar a terra ao “sopro” das
mãos?; ao dizer taoísta de que o mais
importante na panela é o que ela não contém, leia-se: o vazio?; ou
trata-se das folhas de palmeira onde se escreveram alguns livros sagrados na
Índia, precisamente em sânscrito?
O que importa é que Noé, o narrador, nos embala numa
discursividade que se projecta além da consciência ordinária: tanto as
actividades que nos relata (a pesca, a caça, o cozimento do barro, a construção
da casa...) como os lugares onde estas acontecem estão impregnados de vibração;
i.é, simbolizam experiências do numinoso, onde se está dentro e não mais
diante da paisagem. E através deste vínculo dissolve-se a consciência dual,
tornando-se o baixo, numa inversão alquímica, igual ao está em cima, tal como o
dentro reflecte, por osmose, o exterior:
«Passeando assim nos
tempos, me passava
toda a noção de tempo,
e o sol, lançado
pela funda das idades,
acabada
a alegre trajectória
quotidiana
mergulhava ao poente palpitando,
como víscera de
cervo, às mãos da noite.(...)»
XLIV (sublinhado meu)
Nada escapa à prova de fôlego que A Arca constitui:
da noção indiana de «dharma» ao sufismo, da numerologia à tradição astrológica:
«Pela segunda casa, quando o corpo
é já olhar horizontal
de dardo
lançado para a vítima
escolhida,
o urano aventureiro
presidiu
à sagração do touro
(...)»
(LX)
«O sol na quinta casa e a
vespertina
marcaram ao leão
flamejante
seu terreno de caça.
(...)».
(LXVI)
«Na casa seis colhemos
e pesamos
desdobrada semente, e a
terra, enfim
liberta do seu ciclo
noutro entra
de novo virgem serviçal
e escrava.(...)».
(LXVII)
Na segunda parte assiste-se à “anunciação a Noé” e à
desafectada rebeldia do profeta. Este assume um comportamento digno de Prometeu
ou de um Bodhidattva (alguém que estando na via para alcançar o perfeito Estado
de Buda e abandonar o Samsara renuncia e faz o voto de conduzir todos os
seres sensíveis à via da Iluminação), e descarta-se da sua imagem convencionada
de patriarca bíblico. E ante a possibilidade de “safar-se”, de escapar para um
espaço edénico, Noé, com a Arca em plena ascensão, abdica, faz a exortação da
terra, da sua pequenez e fugacidade, da sua vida a um tempo una e múltipla, e a
ela volta. O começo do dilúvio é belíssimo:
«Teve então começo a
grande chuva.
Primeiro um pingo
grosso e outro pingo
E outro ainda esparsos
e sonoros
Como do sobro caiem os
bugalhos
Sobre o solo sem erva à
sua sombra.
Como ramada imensa,
todo o céu
Era uma nuvem só de
estupendo
Negrume. E logo como
olivas
Sob as varas, em dia de
apanha,
Os ovos de gelado humor
caíram.»
Neste retorno à terra opera-se uma alteração de grau na
consciência do homem que acaba por propiciar a eclosão de novos horizontes
abertos, de um novo «fazer-se mundo» como diria Heidegger, de uma realidade de
súbito mais complexa e abrangente.
Não sei se António Quadros/ Grabato Dias, na sua sanha de
tudo assimilar e incorporar, conheceu a fundo o pensamento sufi, se em noites
de insónia privou com leituras de Rumi, Attar, Ibn Arabi ou Saadi – ou talvez o
possamos inferir, se considerarmos como sinal o neologismo grafado no Canto
DCCLVI de
As Qybyrycas: “Estamos
todos embaixo à Grande Mó/ que a todos por igual esmaga a viveza/ e esta razão sufiza
o claro dó/ com que mirando a mutual vileza/ nos
empenhemos a buscar comum/ entendimento, em todos e nalgum”. O que é
claríssimo é que, em Portugal, uma tão vasta “sombra” do pensamento sufi numa
obra só tem lugar em António Barahona da Fonseca, que por seu lado conheceu uma
conversão islâmica. Ainda que seja uma coincidência de percurso é visível no
poema uma íntima familiaridade com a “penetração holística” dos sufis e algumas
das suas imagens/conceitos. N’A Conferência dos Pássaros, de Fariduddin
Attar, por exemplo, um clássico persa do século XIII, os pássaros, que
representam a humanidade, são convocados pela poupa – o sufi – que lhes propõe
encetar uma busca afim de encontrarem o seu misterioso rei, que se chama
Simurgh e vive nas montanhas de Kaf. Depois de muitas discussões e aventuras lá
partem e não se dão conta de que todos juntos, voando em bando, desenham a
fisionomia do mítico Simurgh, o rei que tanto procuram. Não dão conta porque
cada um deles está obnubilado pelo ego e não atinge a visão do Todo.
Num dos excertos mais visionários de A Arca, esta
confunde-se com o corpo de Noé e há uma clara afinidade em relação à figura de
Simurgh, em Attar:
CCXXXIX
«Á minha espádua destra tinha o potro
e à sinistra o touro. Em meus ombros
sustinha o mocho albino e o vampiro
sugador sanguinário, tão sem culpa
como o pombo torcaz em minha fronte.
Vestiam as carochas e os ácaros
meu ventre, e as sanguessugas se pegavam
à pele menos gretada de entre coxas.
Pequenas borboletas e untuosas
lesmas, eram rios de vida em minha
CCXL
espinha. Afogavam meus olhos brandas
sombras de larvas gordas, como pálpebras
cansadas, e as formigas descobriam
meu quente formigueiro das entranhas.
(...)
E já não era mais que um estranho ser
Nem homem, nem insecto,
flor ou verme.»
Esta energia da natureza congregada num «único querer
determinado» – nem homem, nem insecto, flor ou verme, mas a soma disso ao mesmo
tempo e outra coisa já -, tal como sucedia n’ A Conferência dos
Pássaros, não configura exactamente um ser de síntese mas antes um retorno
ao arquétipo; perfaz o trajecto da intuição à organicidade da Ideia, à medida
que se iluminam as sinapses. ( Este processo é o mesmo que António Quadros
utiliza nos desenhos de computador por exemplo, onde se parte da simplicidade
das formas ou de imagens ainda “desfocadas” para uma crescente definição e
complexidade, por adição das partes e rearranjo do todo, método já sinalizado
em 40 e tal Sonetos de Circunstância...: «Percorro um itinerário de palavras/ rumo ao estratificado». Não se
trata exactamente de uma evolução nas figuras mas de uma sua paulatina
sedimentação no mold(e)(lo)).
Poder-se ia ainda falar de uma genealogia que tivesse
apeadeiros em Lautréamont e no budista Dogen («Esquecer-se de si mesmo é ser certificado por todas as existências»,
diz este último), mas faz-se tarde. Retenhamos que A Arca, na sua
inscrição cosmogónica, é infiltrada por uma crescente e subtil imprecação
prometaica, fluido mercurial que na última estrofe eleva o cântico a uma
rebeldia que não deixa intacto nenhum tipo de autoridade: «Filho rebelde ao pai, sê-lo-à aos deuses/ e, do humano, é penhor futuro».
Em A Arca já Grabato Dias dá asas a um dos seus
jogos favoritos: o dos projectos apócrifos.
Em 1975, António Quadros abandona as colmeias por
instantes para deslocar-se à sede da Frelimo, afim de dar um parecer sobre um
caderno de poemas de um guerrilheiro morto em combate, de nome, Mutimati
Barnabé João, que fora devolvido por um escrupuloso soldado português.
É um conjunto de poemas belíssimos, de um “epicismo”
popular e marcado pela experiência da guerra. Os poemas decalcam uma sintaxe
eivada de inversões, algo acrioulada, e emocionam pela facilidade com que a simples
lógica-paradoxal de Alberto Caeiro ganha brilho nos olhos de um guerrilheiro
que tivesse tido umas rápidas leituras de Brecht. Mas em quem, ainda assim,
permanece num certo encantamento mágico do mundo, como se vê no poema que se
intitula Ar Condicionado:
«Estava um dia voando à altura da Lua
olhando em baixo
Indo muito depressa para o Norte e estava sabendo
Que faltava alguma coisa à minha pessoa
Estando um dia olhando a Praça Vermelha de Moscovo (Rússia)
Estava com os camaradas do meu curso e estava sabendo
Que a pessoa minha melhor não estava toda.
Estava um dia vestido de branco na neve
Bafando devagarinho entre os dentes e estava sabendo
Que alguma coisa subtraída da minha pessoa
Não estava de acordo.
...................................................................................
Estou inteiramente na minha pessoa muito
quieto
Deitado de barriga na pedra quente debaixo
do sol quente
Olho o embondeiro, o elefante, o morro de
pedra
São feitos do mesmo material cinzento muito
velho
Estão os três de acordo.
Estamos de acordo os quatro.
Estou finalmente de acordo.
(sublinhado
meu)
António Quadros - que foi sempre alumiado pela convicção
de que a poesia não celebra, transforma - “foi sensível aos poemas” e
abonou-os, fazendo a capa do livro. Cresceu a lenda. Eu, O Povo
converteu-se em poema nacional moçambicano, num hino, e embora multiplicasse os
desmentidos, o poeta de A Arca e O Morto não conseguiu
descartar-se da suspeita de ter gerado um heterónimo; sendo quase sempre
notificado como o autor desse conjunto de poemas. Na realidade, eu vi os
manuscritos redigidos pelo poeta, mas esta questão do estatuto da autoria só
tem valor para as questões académicas. Para quem encarnou a ideia de que
a força de um simples provérbio está no seu anonimato, esta questão é bizarra.
E, em vida, Grabato nunca cedeu à vaidade de se identificar como Mutimaté –
proeza de que poucos se gabariam.
Consequência ou não, anos depois, o próprio Samora Machel
convida-o a participar num guião para uma obra colectiva que tivesse como glosa
Eu, O Povo. Resultou da gorada experiência o livro O Povo é Nós,
escrito «à maneira do mestre Mutimati Barnabé João». E em prefácio, Grabato introduz
a “falácia“ comum a todos os demiurgos: «Falo por vozes emprestadas». Aliás, já
antes, em 1974, no longo poema Pressaga, que canta a promessa da
independência, depois de citar quase a totalidade dos poetas moçambicanos,
Grabato Dias deixara cair, à laia de programa:
«Toca a abrir o olho e a afiar o dente e a
preparar
o poema comum que há-de sair em livrinho
barato
à escala dos simples que é o que não somos
e ao entender das crianças que é o que
ainda soubemos não esquecer...»,
Contudo, o seu hipotético crédito quanto à «invenção» de
Mutimati, advém de trás, da homérica façanha de escrever um poema camoniano em
oitavas e em onze cantos, As Quybyrycas - poema éthico em outavas - (
primeira edição de 72, do autor, e segunda da «Afrontamento», em 92); pendência
que o deu como albatroz capaz de soletrar os ciclones.
Um poeta tem sempre o carácter dos dentes com que aferra.
Em 72, como se explica no prefácio paródico de Jorge de Sena, Grabato Dias
«descobre» um manuscrito com uma dupla atribuição: a Luis Vaaz de Camões e a um
obscuro poeta quinhentista, por acaso antepassado seu, Frey Yoannes Garabatus.
Distribuído por onze cantos, em oitavas, e com 1180 estâncias (saído à cadência
com que o poeta erguia tijolo a tijolo uma casa na sua machamba), propõe-se o poema
cumprir a promessa feita por Camões ao rei D. Sebastião de continuar os Lusíadas. Relato da vida, dos feitos e
da glória de um rei que se metamorfoseou em nevoeiro, contado por quem foi seu
confessor real e o acompanhou à inglória jornada de Alcácer Quibir, o poema
renuncia às perspectivas mitológicas e desce ao «povo meúdo»:
«E a vós do Olimpo, as fartas gordas lapas
que já do grego usei, renego agora.
E vós Tágides minhas pois ganapas
vos tive, eis que por velhas deito fora.
Adamastor, sumida está dos mapas
a derrota antiga que outra é a hora.
Que para explicar o error luso
mais que um error divino será de uso.»
(Canto Um).
Invocam-se deste modo os fados para se falar do horror dos
aflitos, extraviados por naufrágios (belíssima a sequência do naufrágio - o
Sepúlveda?), pela peste, pela penúria propícia aos nado-anjos que são os lusos
filhos da crendice, e pelo relaxe com que os autos-de-fé animavam o
ardor cristão. Em photomaton presenciamos a demência de Sebastião, desde
os cueiros aos cinco cavalos que delapidou na batalha. Belos como visuais os
versos que recobrem o combate:
(MXCVII)
« Suplicam-lhe que fuja. Já não
escuta.
De novo investe o mar de carne
bruta.»;
«(...) e o rosto inteiro
É um jardim de sangue vivo e grosso
pastando-lhe na barba de mimoso»;
(MC...)
«(...)
El rey avança
desmembrando e talhando sem entravos
como se o não vissem ou a vê-lo inteiro
não o acreditassem verdadeiro.»
O poema procede, evidentemente, a um lento desmantelamento
do mito heróico português, e aos planos arquetipícos e à harmonia
preestabelecida que ordena sempre a poesia épica, contrapõe o sarcasmo, o amplo
espectro da baixa índole, a prosaica musiqueta que (apesar da “espirituosa”
perfeição da rima) ilustra a mesquinha e material motivação humana. Frey Ionnes
Garabatus procede como um leitor de François Villon, um topógrafo dos
tremores colectivos que nunca confundisse a alma com os abrolhos vulcânicos do
terreno.
No Canto
Quatro, profético, deslinda-se o propósito do poema:
«Se algua herança deixo seja esta
inquietada e interrogativa
questão com que perturbo toda a festa
em que a vida se finge estar mais viva
milhor mimando a morte na funesta
canção do muito erro e recidiva...
...Antes um filho
inquieto que a moleza
desta apagada, vil, ruim tristeza.»
O mesmo voto de rebeldia aos deuses, reis e mitos, que se
encontrava n’ A Arca, o mesmo apelo à coragem cívica de interpretar o
fluir e os descaminhos do mundo (leia-se país). Razão para o poema não se dar
como épico mas como «éthico».
Facto/ Fado - piqueno tratado de morfologia, parte
VII, lançado pelo poeta em 1985, é uma pletórica descida ao espaço da
infância, mas à maneira de Wordsworth, com aquela a ser pretexto para uma
meditação sobre a escrita, as suas dobras e avatares.
Duzentas e vinte e sete páginas de um matagal
auto-reflexivo, nas quais, ao contrário do que recomendava Pound, com um
máximo de concentração e um máximo de palavras o poeta explora o seu
húmus: inconsciente e biografia atados numa só urdidura. História
objectivável e sujeito reminescente imbricam-se, perseguem os seus loci
memoriae, ou então convertem a matéria da vivência numa entidade estranha,
de ardilosa morfologia, que é preciso sondar. Grabato, que ao contrário dos
outros meninos não descobriu o alfabeto nos jardins-escola, mas na sopa, nesse
fluido movediço, narra como aprendeu que o lugar ocupado pelas coisas é
instável, ou antes, é amorfo, cabendo
à palavra operar como o interruptor de intensidades, ainda que nada altere a
intransitiva identidade das coisas:
«Não há no que consentimos substituição ou desvio.
Somos
a pedra, o punhal, a bala
Mas
nunca bala por punhal, punhal por pedra.» (pág. 73)
E não obstante a base infinitamente divisível da palavra
relevar o seu carácter ilusório, tornando-a defectiva - «As
palavras não redimem as coisas. Nomeiam-nas./ São a coisa, restando sempre outra coisa aquém disso», pág.11 – ou mesmo suspeita
- «Não faz sentido falar da rosa sem
primeiro falar do rato», pág. 17) - ; por outro lado esse feixe novo de
intensidades instaura uma necessidade (assim como o vazio propende ao cheio),
imprime uma memória e entranha uma
visão:
«Se partirmos das
palavras, do sítio onde estão
No vento, nas bocas emitindo, no dicionário
E as colhermos pelo que são – bonina
ou orquídea –
E as aceitarmos no seu justo imenso poder
E as dispusermos legíveis entre núpcia e
emboscada
Não há mais problema:
A ideia que lhes
pertence desce e devora-as
Como um gavião
numa ninhada de pintos.», pág. 55
O que tem um efeito sobre a própria vida:
«É a
vivência o contá-la
já
depois de acontecida?», (pág 230),
E, por
isso, se a palavra não é ainda um lugar sagrado é um refúgio, a arca possível:
«Meu Amor, como pensares-me morto e ser triste?
Estive sempre em viagem. Só agora regresso.
Usa o teu sorriso. Tira o coração da arca
De entre os linhos, alfazemas, naftalinas
E usa-os no domingo de todos os dias do ano
(...)
Estou catando os cachorros, apanhando limões
Abrindo a colmeia no fumo cheiroso da bosta seca.
Sorrio, pela primeira vez, sem comandar os lábios
Com o esticar dos fios da complacência doméstica.
Destrinço o sexo na ninhada da velha coelha
Virando
de barriga para cima os veludos das crias.
Espero
daninho o teu regresso, acocorado no verão
E, porque cheguei ao verso, estou vivo» (pag. 162).
Sagapress (1992), último livro publicado em vida
pelo poeta, curiosamente uma recolha de material heteróclito com datas
anteriores (76/80) à feitura de Facto/Fado (82) dá-se a ler como uma
espécie de isotopia deste. Uma pulsão diarística e um prosaísmo reflexivo
associam-se neste livro à oralidade, numa espécie de dança em falsete:
«(...) poetar é esta dolorosa cartografia (...) fractando em detalhe, perdendo
em singeleza.»
«Que lugar ocupa o
pássaro descuidoso?», pergunta às tantas o poeta e estes versos de uma
poderosa armação lógica, que já não ponderam o disfarce de uma beleza
consentida, canónica, ou a música da métrica, apresentam-se sem amenidades
estéticas ou forros de seda, como artefactos, entreactos, pássaros mecânicos de
ritmo manco, espelhos refractados pelas ásperas texturas do real, ou até como
“comunicados de última hora” (- e assim se chama o seu último capítulo). Uma
espécie de diário noticioso do poeta, num momento em que para o país
(Moçambique) a informação é tudo e onde o vate dá conta, no confronto com a
realidade, das alterações climáticas da sua alma.
É evidente que um projecto destes não pode ser senão um
emaranhado de linhas soltas, peças de puzzle que um vento adverso desuniu,
fragmentos de proveniência, inspiração e intencionalidade muito diferentes.
Podem contudo recensear-se alguns dos seus temas obsessivos: o tempo (e nem de
propósito todos os poemas são datados), o estatuto do lugar (e metade dos
poemas têm o seu embrião localizado), o movimento (interrogações sobre o ritmo
e os trajectos de pessoas, bichos ou coisas são constantes), o poema e a sua
ontologia passadista («martelicando maneirismos»), os naturais comentários à
vida política - que aqui se vazam em poemas desiguais e em versos eivados de desencanto («...Chatice e facúndia. Ó manas alegres!»).
Há poemas de uma dimensão puramente
conceptual, quase abstractos, que parecem visar unicamente desmentir a presença
da emocionalidade (essa transitividade dos vínculos que nos melhores momentos
voltará a cunhar os aspectos referenciais de Facto/Fado).
Vejamos agora este poema, escrito na Machava:
«São
leis físicas quem rege o pensamento.
(...)
Ponho uma velinha no altar de São Newton
enfeitado a maçãs camoesa bordadas a ponto
cruz.
Digo: - Obrigado velhote, pela teoria da
luz!
E continuo a rebitar versos cu com cu
beatamente repleto de lei moral em caril
e um pouco chateado pela rima imprevista.
Toda a alteração da regra conduz à regra.
Não há nada a fazer. É assim.
Todo o sentimento acaba por ter peso e
medida
a tramar-se visível na teia das rugas.
(...)
É inquietante ter de viver consciente da
vida.
Nunca mais estar vivendo apenas, passando só
pelas fracturas das brisas (...).
A museologia exterminou a fábula, e os mitos
saem das linhas de montagem já enlatados.
Consumo imediato: rótulo encarnado.
Rótulo verde: ração de combate.» (de
10/7/76)):
É o desabafo mordido de quem já não crê em nada e
atravessa uma fase de desalinhamento e prostração. Lembremos que os poetas
rapidamente se desiludem com as Revoluções e o afunilado “pragmatismo” do
Estado. António Quadros implicou-se como pedagogo, intelectual e arquitecto de
prodígios no processo histórico que se pôs em marcha com a independência de
Moçambique e é provável que a generalizável incomodidade que se sente no livro
provenha disto: Grabato Dias empreendeu durante anos, como poeta, uma luta
contra o sacrifício do Homem à História. Por isso o seu foi sempre o território
do mito, da fábula. Com o comprometimento na dinâmica social do país o poeta ia
sendo engolido pela História. Inspirado por uma táctica leninista acabará por
dar dois passos atrás para recobrar o balanço do próximo salto à frente, e aí
focaliza-se na infância, cura-se pela mais arcaica afectividade da memória. Em Facto/Fado.
Tornaram-se pois, premonitórios, estes versos de SagaPress:
«Tanto tempo a andar em redondo para
acabar nisto:/ Ter esquecido a única coisa que soube algures realmente.»
Sagapress, no entanto, apesar da sua tónica mais
prosaica e “filosofante” tem momentos de apetecido humor e leva a um extremo
vibrátil a inquirição sobre o fingimento das emoções poéticas e o lugar de onde
emana a palavra:
«Um grande filósofo que também era um poeta
menor
disse certa vez que a Poesia vinha de dentro
das palavras.
Eis que venho à ribalta, eu, um filósofo
menor
(estão a topar?) afirmando que se chega à
Poesia
vindo do lado de fora das palavras
percutindo-lhe a casca a verificar se estão
ocas
e cuspindo-lhe para que brilhem e façam
vista
com um visgo destilado de cuspo de rouxinol
que as cola umas às outras em ordem adversa,
que é necessário reinterpretar da direita
para a esquerda
até achar um significado adequadamente
impreciso e imprevisto.»
(15.6.76)
Santo
escrutínio de uma perplexidade que nunca soube estancar.
Grabato Dias nunca se encobriu. Foi prefaciado por Jorge
de Sena, Eugénio Lisboa, Fernando Namora e cantado por José Afonso e Amélia
Muge. Sempre escreveu para ser lido, ainda que em edições de autor.
E, não obstante, pode afirmar-se que para três gerações de
leitores é um completo desconhecido e para as mesmas de críticos (a avaliar
pelo silêncio) é um poeta intratável.
A sua atitude, como criador, poeta ou pintor, foi sempre a
de um polinizador de mitos e o seu “volume de trabalho” assusta o leitor
apressado, o que em parte explica o desafecto de que é vítima.
Em meados dos anos 80, Joaquim Manuel Magalhães, em nótula
curtíssima sobre a sua obra, lamentava que a sua vocação fosse por azar heteronímica. É, em nosso
entender, um juízo um tudo nada precipitado, pois com os anos, apesar do comércio
em Pessoa, até a heteronomia (como já foi estudado) adquiriu ambivalência, mise
en abîme.
Ao contrário de Pessoa o tornar-se outro ganha em
Grabato contornos de uma polifonia irónica. Em Pessoa desembocava-se numa
dicção em solilóquio das múltiplas personalidades que o habitam: o leitor não
participa do jogo. Com Grabato locutor e intérprete entrelaçam-se e instaura-se
um outro plano no jogo da heteronomia: o do leitor, nos múltiplos papéis
que este é obrigado a desempenhar face à sua convocação permanente, quer para o
reconhecimento dos códigos, quer por via da provocação (política ou estética) a
que é sujeito: «Um cão ladrou, alguém riu e entrou no verso/ vindo naturalmente
de um anverso de pão de ló».
Por outro lado, Pessoa chamava aos seus heterónimos «essas
figuras minhamente alheias» (como se lê na nota introdutória às Ficções do
Interlúdio), o que os reduz a personagens da “prosa dos seus versos”. Grabato
Dias nunca assumiu a criação de Mutimati Barnabé João, anonimato que confere ao
poeta-guerrilheiro uma consagração mítica; ser-lhe atribuído ou não Eu, o
Povo já faz parte da lenda, não é uma plausibilidade retórica. Ou partirá o
seu escândalo do facto de não ter reivindicado a autoria?
É verdade, isso sim, que a sua poesia tende a necessitar
de «modelo», por ser um exemplo em carne
viva de uma energia que se nutre secreta e dialecticamente da tradição. Mas
como pode o poeta contemporâneo proceder de outro modo nestes tempos em que «a
palavra» foi furtada à inocência de cantar ou celebrar o homem, ou Deus, dado
que «tudo se tornou problemático, a começar pela linguagem» (Nicanor Parra)? E
não tem sido essa a prática nestes anos recentes em que tanto se bradou por uma poesia da partilha, de retorno à
tradição? Grabato Dias teve sempre como criador uma atitude de confluência,
e terá sido de entre os grandes poetas da sua geração um daqueles que mais
reagiu contra o eclipse do teor e mesmo da recepção “universalista” da poesia.
Por isso sempre quis ser cantado.
Há outra explicação: a poesia de Grabato Dias não autoriza
a passividade do voyeurismo; de uma estirpe outra, predadora, canibal,
abala a mansuetude dos salões. A tradição, fonte onde, como Quíron, sorve da
sua própria imagem, é nele uma natureza posta à disposição para ser digerida, assimilada,
reinventada, e nunca objecto de reverência (Grabato contou-me que à insistente
pergunta de um poeta – Gastão Cruz ou Assis Pacheco, já não recordo – sobre se
havia gostado dos seus versos respondeu, para desagrado do outro, “gostei tanto que já incorporei”).
Grabato mergulhava nos rios para lhes desviar a corrente e interpelar os
próprios reflexos.
Por último, dá jeito não se saber a que país atribuir-lhe
a sombra.
Isto, sem contar com o riso, um movimento de alma que
ainda não se curou de maldito. Como se lê em Saga Press:
«Então há deuses? Claro que há!
Do lado de cá, do lado de cá.
Viram?
Não há nada como ser
desonesto!
Exorcista devia ter cartão e sindicato».
O seu tempo chegará, e do mais nos resgate o siso!
PS. Meu caro António Quadros, um pedido: quando estiveres
a explicar ao Nabokov, «Não há apicultura de solitários. Nunca vi um só
misógino, apicultor», importas-te de perguntar-lhe se a caça às borboletas tem
defeso?
Foda-se, este é para imprimir. Obrigado.
ResponderEliminarExcelente, António. Também vou imprimir porque gosto mais de ler em papel, e tenho de reler. Obrigada.
ResponderEliminarAliete
Grande texto, pá. Já tardava, o Grabato...
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