quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O TIRO AO ARCO E OUTRAS BAGATELAS

                                                                     edward weston


Leitura no café de um belo livro, L’Esprit Guide, entretiens avec Karlfried Durckheim, mas uma leitura inquieta, porque um homem me olhava como se estivesse a mirar um cego. Aquela mão, aquele cigarro, aqueles olhos respiravam-me, e eu sentia-me incomodado como o muro que se alça sem reservas e com confiança e que no fim descobre estar a paisagem murada:
O discípulo, no tiro ao arco, atira durante três anos completos sobre um alvo de metro e meio de diâmetro, à distância de três metros. É surpreendente. Rapidamente me dei conta de que o tiro ao arco como exercício espiritual não tem nada a ver com o objectivo de acertar no centro de um alvo com uma flecha. Trata-se de outra coisa. Aprendi que, na tradição japonesa, uma técnica dominada não serve para uma performance mas o devir do homem.
Relata Durckeim, e poucas vezes li palavras mais certeiras sobre a poesia. Portanto, o tiro ao alvo no arco tem como fito esquecer a mira e a poesia é um fazer despertar a tensão na palavra erradia. É indiferente a luz que se projecte sobre o alvo, se o torna mais ou menos visível, tal como o realismo não passa duma incidência grafológica, semelhante às pegadas das gaivotas na maré-baixa.


O racional é a força de poder distinguir. (…) O mental num homem encontra os seus limites nos próprios limites desse estar-aí. Um tem um cérebro de pássaro, outro é um sage. Como quereis meter-vos sobre um mesmo plano? Não há um problema da vida que não seja diferente para um e para outro.
O grande embuste dos media é a ideia de que somos todos iguais e que temos todos os mesmos gostos - audiométricos. Seria um belo fruto da maturidade começar a aceitar a ideia de que devemos ter todos as mesmas oportunidades mas que aquilo que cada um faz com isso e a que nível maturou o seu auto-engendramento é diferente, muito diferente.     


Podemos ser melhores pintor, sapateiro ou marceneiro se sentirmos uma responsabilidade para com Deus e não simplesmente para com o nosso cliente. (…) Trata-se sempre do facto de que cada exercício em cada ofício contém a possibilidade de enraizamento numa responsabilidade mais profunda. Não se trata unicamente duma responsabilidade em relação a M., o cliente, mas em face de uma instância “anónima” e mais profunda. Se o relojeiro faz um relógio, não se trata apenas de contentar o cliente mas de fazer uma pequena obra de arte. (…) Esta responsabilidade pode não ser simplesmente face a alguém ou de qualquer coisa deste mundo, mas estar enraizado numa transcendência.
Não reconheço Deus no meu itinerário actual mas sinto-me identificado com uma espécie de yoga da poesia que me eleva a concentração mental até ao ponto de, sometimes, anular toda a distinção que me separa do objecto da (minha) contemplação.
Dizia o velho William Blake: «O que não é capaz de imaginar para si rasgos maiores e mais fortes, ou de ver com uma luz mais potente e intensa que a do seu perecedouro olho mortal, não pode de maneira nenhuma imaginar».


Um dia, em Paris, alguém fez uma conferência na qual falava do homem e do humano. No fim, levanta-se um psicólogo, um freudiano, e pede-lhe:
- Senhor, que quer dizer com “o humano”, não pode dar uma definição de humano?
- Não posso, desculpe… - respondeu o conferencista – mesmo que o pudesse não o faria.
- Como? Insisto, que pode querer dizer o humano?
- Não sei, senhor. E se o soubesse não seria humano.»
Também desconfio não saber, e menos ainda desde que me inteirei de que nos sonhos o polícia que é o nosso pequeno-eu dormita e que o maior carrasco do mundo tem os sonhos de uma criança inocente. Suponho que só pode ser uma aprendizagem que não acaba.
Aqui sinto-me próximo de Wittgenstein, que escreveu: «Temos tendência a confundir a fala de um chinês com um gorgolejo inarticulado. Alguém que compreenda o chinês reconhecerá, no que ouve a língua. Muitas vezes não consigo, analogamente, distinguir num homem a humanidade».


Esta concentração sobre a respiração não é ainda a meditação. A meditação começa no momento mesmo em que esse movimento se torna automático. Não somos mais nós que respiramos, é o ritmo quem nos respira. Então, tudo se cala.
Hum, hum. E o mil-folhas devora-me, paulatinamente. Chego à cobertura de chocolate já lambuzado pelo silêncio. Peço-lhe um café ou um gim? Porque me chega à mente a imagem de um bolbo de tulipa? Precisamente daquela tulipa?


É preciso fazer a distinção entre a profundidade de um sentimento e a sua intensidade. Muitas vezes não os distinguimos.
Ui, touché. Fui uma vítima atarantada por ter levado uma vida a não conseguir separar a aranha da teia. Penso que estou um pouco mais ordenado, mas levei cinco filhos e quatro casamentos a aprender que entre a profundidade e a intensidade nos pode salvar o vento.






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