quarta-feira, 1 de agosto de 2012

JOGOS OLÍMPICOS: O SUL E O NORTE

                                                           assoando a bela adormecida    

E ontem havia o boxe, nos Jogos Olímpicos.
Na TVM anunciaram que iríamos assistir ao combate entre um atleta moçambicano, Júnior, “A Máquina”, e um atleta búlgaro de nome impronunciável. Esperei meia-hora, salpicando os olhos no livro de Catherine Clément sobre o Lévi-Strauss e o seu «inventário dos campos mentais», enquanto o meu corpo, em vigilância súbita, espera o combate. Sinto-me um galo, de crista e músculos retesados, prestes a lançar a fúria dos meus excrementos à face da humanidade. Respingo com o tempo que não passa, bebo um copo de vinho para me acalmar.
A Máquina entra no corredor para o ringue. É um alfinete que ginga da esquerda para a direita, à procura do lugar onde lhe esconderam os ombros. Nunca havia visto uma alma tracejada em osso, o crânio seco, as pernas como duas penas de pato. Não quero acreditar que tenham atirado às feras um xamã raquítico, com braços mais frágeis que os cabides de arame onde penduro as camisas.
Entra o búlgaro, um físico habituado a derrubar uma pedreira à marretada antes do pequeno-almoço, os músculos bem torneados, pura música temperada em aço, as pernas são duas camadas geológicas que sustentam em cima uma paisagem de robles centenários.
Começa o combate. A Máquina atira os seus palpos para o ar, são pequenos palpos de aranha e não braços pois estão sempre dobrados ou nunca atingem o seu adversário - socam, socam, socam, socam o ar… e por detrás deste o búlgaro limita-se a controlar as distâncias e a disparar um jab ocasional que invariavelmente acerta e faz estremecer o capacete da Máquina.
Ouço o comentador especializado dizer que a Máquina é um talento natural, bruto, mas que só treina, treina, treina no ginásio, que a federação ou o manager não lhe arranjaram qualquer combate, antes. Interrogo-me se este não será o seu primeiro combate e não lhe faltará aprender que os braços se esticam e nos uppercuts desfazem os ângulos. Debate-se como um cego, esmurrando, perfurando o ar… em torno, entre, acima… magrinho como o cão que se esquece de comer só de pensar na sua cadela.
O búlgaro bate, amassa, com a gravidade de quem embeleza um morto.
No final, tentando justificar a fatalidade, ouço o comentador contar que nos recentes Jogos Africanos também tudo tinha corrido mal aos boxeurs moçambicanos porque a federação só distribuíra as luvas oficiais aos atletas na véspera dos combates e que estas pesavam o dobro daquelas com que costumavam treinar.
Percebo então o drama do Máquina-de-murros-a-meia-haste: ele não podia com as luvas. Vou à varanda fumar sorrir com as desgraças dum desporto entregues a Federações mais tesas que a minha conta bancária. E no ínterim nocturno vejo passar os cadillacs.   

2 comentários:

  1. Crónica retrato quase macabro de uma situação muito presente em Moçsmbique: a insuficiência de meios para comprar as luvas que são devidas ao atleta que representa o país nos Jogos Olímpicos e os "cadillacs" que passam, constantes, indiferentes a humilhantes situações nacionais que não preocupam minimamente quem se deveria envergonhar do ridículo espetáculo dado ao mundo pelos sofisticados e atualíssimos meios da comunicação internacional.
    António Cabrita revela a sua espantosa capacidade descritiva de potencial repórter do quotidiano, a sua cultura literária e a sua cultura desportiva (ele conhece o que o representante de Moçambique nas Olimpíades parece ignorar)mas, acima de tudo, revela-nos o mundo cão em que se sente inserido quem toma consciência de uma realidade que escapa a qualquer tentativa de compreensão.
    No tecido discursivo da crónica ressalta a fina e amarga ironia sarcástica, quase raiva, do crítico.
    Quem lê (e não conhece Moçambique) fica com a impressão de estar a ouvir falar de um país de "faz de conta"; mas, infelizmente, ele relata a mais dramática realidade de um hoje que ainda há poucos anos foi a realidade de um país sem cadillacs mas onde uma Lurdes Mutola ombreou e ultrapassou atletas internacionais levantando no pódium a bandeira moçambicana.
    É urgente recordar os valores desportivos que já enalteceram Moçambique e impedir que outras "Maquinas",ridiculamente apresentadas em combates desiguais, envergonhem um povo que merece respeito.

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