LUISA FUTORANSKY (1939) é uma premiada poeta
argentina com vocação para andarilho, que, depois de ter vivido vários anos na
Europa, de 76 a 81, viajou pelo Extremo Oriente, tendo ensinado régie de ópera
em Tókio e trabalhado como redactora e locutora na Rádio Pequim. Os poemas que
aqui posto pertencem à sua antologia De
Onde Son Las Palabras, da Plaza & Janés, 1998. As versões são minhas.
OS QUATRO GINETES DO APOCALIPSE
o meu coração pastou em ervas de
todo o mundo
o meu coração que ouviu como uma
mão estalavaem noites de lhe ser embotada a fala por uma lua rubra, alaranjada, azul, branca
o meu coração que enxergou barcos grandes como cabeças de alfinetes
nos remotos confins dos oceanos
e trepou costas acima e largou a tempo e inoportunamente as roupas interiores
e de voltar nem falam
sorveu o meu
coração o esperançoso vinho de todas as superstições
pela vontade de
que as quatro pessoasque estão na bússola e são ventos
fossem uma, para que minha mão lhes acariciasse o rosto,
um rosto silencioso, curtido, de oito olhos
que me brindaram com o que hoje só me chega com a orvalhada
o meu coração
queria também dançar um tango
com os quatro
ginetes do apocalipseporque para dançar o tango
há que ter confiança.
OFÍCIO DE FEITIÇARIA
Há que comer um coração de tigre
impúbere
para manter afiadas as garras; há que chegar ao centro da estepe
e cortar a língua ao lobo esfaimado
para poder falar com a lua;
só peregrinando com os tarahumaras
abastecemos luxuosamente o silêncio;
há que sofrer o cio de todos animais
para conhecer os ritos do amor.
Iniciada enfim, mulher,
vai ao encontro do teu homeme caminha ao seu lado no término das estações;
mas nunca voltes a cabeça para relembrar a tua inocência
porque com ela alguém prepara
um novo sortilégio.
PECADO MORTAL
Desejo
o boi,o asno,
a janela,
a batente,
a toalha que o esfrega,
o resto do seu prato,
a Ele, sim;
Ele, que pertence,
já,
à minha próxima.
RAZÃO DE ANATOMIA
Beijei poetas, pintores,
cineastas
empregadas, princesas judias,
gatunos, hippiesengenheiros, tenores, guerrilheiros
cruzei na minha boca todos os caminhos da vida.
É tempo de ocupar-me dos meus pés.
ENVELHECIMENTO
1
Sei agora que não bastaencontrar uma estrela fugaz
ou uma moeda romana debaixo dum pote
para ganhar o dia.
2 Avelhesinto
ou
sendo em vez de sinto?
Emvezdesinto
igual
a sendo menos sinto?
Sei que está para chegar e apronto-me
para a batalha
noto-te, vizinhança do poema,
noto-te nas coisas que se afastamtudo pode postergar-se menos isto
é esta habitação, é esta palavra
sou eu desde que nasci
com cada uma das cicatrizes que deixaram os rostos na minha vida
com cada um dos dias que não voltarão a repetir-se
cada palavra que se pronunciou
e a soma de todas que se deixaram de pronunciar
todos os sonhos imersos, esquecidos
os remotos sinais da divindade
as serpentes que a alguém devoram
ou, nas grandes épocas de estio,
que alguém pode devorar.
O poema, esta Grande
Ópera a que não faltam as marchas triunfais
os punhais de lataos anéis com fundo secreto para guardar o veneno
as traições
as perucas
os sonâmbulos
os divos
os dragões de celofane
os verdadeiros dragões
os polifemos com o seu único olho vazado
deux ex machina
vem comigo deus
vem a este quarto
espreitar o que o poema é.
cada margem com as suas particulares ambições e desalento
um segmento do Ródano que aqui pronunciam ron
como a repetida onomatopeia de animais,
diz que domésticos, extraviados de carinho e a insular bebida do Caribe
Cidade esta, Arles, de comerciantes e burgueses
de profissões chamadas liberais, que, de abertura,
se ficam por uma estreita, irrespirável greta no crânio,
com alguns árabes para os trabalhos que repugnam os nativos
e turistas sem sol nem mistral,
em suma, de menosprezo sem remédio ao estrangeiro.
Conheço, por arrastar-me em
trechos crepusculares
algumas de suas varandas de
poucos rostos,um, por exemplo, associado para sempre a dois gatos
de um velho estático, incrustado em boina e cigarrilha,
os gatos parecem dourados
como tanto agradavam a um amigo morto
e eis à mão o estranho rio cuja cidade
vá-se lá saber porquê, volta as costas
às suas quimeras.
Adoro também demorar-me a divagar
rente às feridas e transformações
dos muros expectantes
erodidos pelas paixões mais graves
já que das paredes se exala sempre um cheiro a notários
herdeiros e inimigos.
Enclausurarão por isso desta forma as janelas?
Quererão guardar todo o ódio para si?
O Hôpital Dieu onde Van Gogh e eu dormimos
carrega ainda o ar de urinas e
incontinências dos loucos e dos mortos,os nossos vizinhos retorcem as mãos com o pesadelo
e a rua principal cobriu-se
de saldos e de guardanapos com os vermes
de todos os Mac Donald’s do mundo, uni-os.
porque já ninguém cortará jamais orelha e rabo em nosso nome,
talvez, com cuidado, no espelho das fúrias
um por outro pêlo, inoportuna lembrança de naufrágios,
torpezas e ternura que tenazes persistem, sob
as palmeiras selvagens daquela, única, extremidade.
O Ródano desfaz-se nas minhas mãos
e os olivais recortados
deste povoado mediterrânico
evocam o melancólico e perecedouro
de todo o afã.
As sementes de girassóis
que adoram as catatuas brancasdas fábulas sangrentas
os girassóis, os girassóis
bah!
a lua (o
sol, as estrelas, todas as pedras das estelas, as bússolas,
o torno e o forno de cozer a terracota, a crista
dos pássaros em chamas, os raios e centelhas das bicicletas e o último
cotão de pó que escondeu a unha)
em Pequim (laca brilhante da Cidade Proibida, um rumor de falanges,
falanginhas e falangetas, um cortejo de bubões e de gânglios
que rebentaram em Pequim, Pequim a sanguinária)
perdeu (os órfãos grãos de arroz abandonados entre os restos fumegantes
do Museu da Longa Marcha e a lua que bruxuleia no caprichoso traçado
da Grande Muralha por fidelidade ao único monumento que desde
os primórdios e no nosso tempo testemunha o suor e lágrimas
do homem, esquecido por asco e vergonha no fragor da dor)
a sua madrugada
quantos séculos perdeu a lua em
Pequim
esta semana?
Do melhor que a literatura argentina nos pode oferecer. Futoransky é uma grande senhora das letras latino americanas
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