O que perturba na tua morte, Neil Armstrong, tão indecifrável
para mim como as estrias nas cascas das tartarugas,
onde alguns leem o futuro (milénios de sageza não me trazem
consolo ao elitismo dos números primos)
é que me havia esquecido de todo daquela tarde.
Tinha dez anos quando pisaste a lua, já
havia trocado Enid Blyton por Mark Twain
e estava ofendido por nenhuma rapariga ter ousado
reparar
na excelência do meu espírito, quando saíste da
nave
e olhando o grão azul da tua origem deste conta de como eu era insignificante,
e o teu passado idem - condensado nos olhos
que te cresciam de pasmo com o peso da memória
que agora te parecia vã, debaixo daquele fato de astronauta.
Mas a perplexidade que te devorava (o engodo
da vaidade lambe-nos os cascos de bode até nos supormos deuses) traduzia-se ainda
nos passos de um titã (à sua medida, já electrónico)
a sentar-se impante no banco de coral
que conectava a mente de milhões de crianças ansiosas,
enfermiças e tímidas, mas exultantes como só os rouxinóis
japoneses depois de um tsunami,
e desfazia a matéria dos cristais
transformando-os em olhos de pavão.
Fomos milhões de aves naquela noite
em que uma tv a preto e branco nos pôs a almaa cantar a capella (não havia ainda código de barras).
Não sei se mais alguma vez se repetiu
uma congruência assim, como a da chinesa
que nessa mesma tarde, encontrou Miller
em Big Sur e ouviu os sinos de Veneza,
não se sei alguma vez se repetiu, se era mesmo
possível repetir-se uma metamorfose de Ovídio,
em directo (na RTP de Salazar, nunca mais).
Mas sinto-me tramado desde então.
Ter-te-á sido fácil a vida ou derrapou
no próprio acto de teres medido do espaço a
pequenez do Everest? Desconheço, se o mais se te tornou insosso,
ou se depois de pisadas aquelas crateras mais secas
que alguns sonetos de Quevedo e banhadas
por uma escuridão que faria descuidar Borges e Homero,
desataste a parar o carro, inopinadamente,
à beira da auto-estrada para veres como as
margaridas
rebentavam, o mais pequeno rumor de miosótis,
numa paixão pelo insignificante que cedo enervou
os teus,
impacientes por outro tipo de bênçãos.
Escrevo isto alheado da tua história,
dos seus inconcretos domínios, se te derramaste
em alcoolemia ou em croupier num casino,
se a Nasa te converteu em maître de conferências
ou se netos já tens à beira do divórcio
– desconheço, meu mestre, tudo sobre a serpente
que um dia me encantou em pavão.
E guardo unicamente como certo
que a tua última gota embateu no chão
da mais rala realidade e que, para além de te
desejar
o melhor de três mundos (apesar
de não me teres soprado qualquer dica no exame
para
engenharia), sou um dos teus últimos salpicos.
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