sexta-feira, 31 de agosto de 2012

COISAS SIMPLES


Dada a aula, faço horas no café para que sejam doze, hora em que é ligado o elevador do meu prédio. A dado momento pergunto as horas à empregada, que tem uma enorme cebola no pulso. Surpreendentemente ela enfia a mão no decote e saca um fio, onde se pendura um relógio pequenino – no qual vê as horas.
Escuso de lhe perguntar por que raio usa uma cebola de quilo ao pulso: é um adereço que lhe confere status. O relógio está com certeza avariado ou por dentro já nem tem as cintilantes tripas dentadas do costume, mas ela julga fazer um figurão com ele – sobretudo no chapa; aí, entre apertos, ela imagina que lho invejam e que alguém, em vão, congemina mil planos para o roubar.
É sempre então que ela leva a cebola ao ouvido e imagina: tic, tac, tica, tac… Coisas simples.
 

O Nuno Dempser teve a gentileza de escrever um magnífico texto sobre o meu Ficas a Dever-me uma Noite de Arromba. Pode ler-se aqui. Coisas simples. 

Entreguei as provas de Para Que Servem Elevadores, e outras indagações literárias na editora. O livro agora vai para a tipografia.
Vai tarde. Gostaria muito que o Augusto de Carvalho o tivesse lido, mas ele cometeu a desfaçatez de nos deixar antes, há uma semana.
Já conhecia o Augusto de Lisboa, do diário Europeu, em que colaborei e onde ele era o director. Há dois traços que gostaria de destacar no Augusto: a sua disponibilidade humana e a sua postura equidistante em relação a moralices.
Lembro-me como foi criticado no Europeu por ter ido buscar uma série de jornalistas considerados irrecuperáveis, como o Luís Carlos Patraquim ou o Eduardo Guerra Carneiro, e a coragem com que rodeado de “gente perdida” fez um magnífico jornal.
Nestes meus anos de Moçambique, na Politécnica, onde trabalhámos juntos cinco anos vi-o sempre tomar posições incómodas e ser de uma grande frontalidade, no apuro da racionalidade dos processos. Honra seja feita a Lourenço do Rosário que sempre ouviu e respeitou essa autonomia do Augusto.
Era para muitos uma figura controversa, devido ao jornal Domingo. Incompreensões muito próprias a um país que vive ainda a preto e branco. As dialécticas do Augusto eram de outra natureza, mais complexas. E o seu compromisso era com o país que ele havia abraçado. Por isso conseguia a um tempo estar integrado e ser crítico, numa atitude de uma invariável franqueza. Eu assisti a inúmeras manifestações desta natureza. Muitas vezes com uma ironia (o Augusto gostava de rir) pouco captável para muitos. Quem tivesse assistido como eu deixaria de ter dúvidas.
E no essencial, o que mais me interessa, era um homem de afectos, que traduzia em actos. Não fomos íntimos, mas estimávamo-nos e em algumas situações em que estive enrascado o Augusto valeu-me, desinteressadamente; apoio que não encontrei em muitos que se diziam meus amigos. Coisas simples.
O Augusto era de uma grande qualidade humana. Estar-lhe-ei sempre grato.
A ironia é que nas últimas semanas, eu e o jornalista Rui Trindade, congeminámos fazer com o Augusto um livro de entrevistas. Porque o Augusto era um poço e um excelente contador de histórias, com uma memória magnífica e uma vida repleta de encontros e de bastidores. Basta pensar que em Portugal, como director do Expresso, fez cair o primeiro- ministro Francisco Pinto Balsemão, que era seu patrão; ou nos seus encontros com Samora, de que me fez deliciosos relatos. O Rui faria a entrevista, eu assista-o e tentaria produzir o livro. Estávamos já em atraso.
A última vez que nos vimos, há mês e meio, ele deu-me boleia e falamos do encanto de termos filhas pequenas. Agora mesmo irrompeu a Luna pelo quarto e anunciou deliciada: pai, fiz o meu primeiro avião que voa – e atirou sobre a cama o seu avião de papel. Pude confirmá-la: boa filha, já és engenheira! Ele contou-me como a filha agora queria ser ela a interpelar os polícias de trânsito quando lhe faziam parar o carro e então, logo que o Augusto abria a janela, ela comentava: “Sr. Polícia, o problema com a polícia é que os srs. agentes são muito magrinhos, e assim não podem perseguir os verdadeiros maus…” Vê-se que a menina herdou o particular humor do pai.
Quando sair o livro só me resta ler o livro em voz alta, para ver se o Augusto ouve. Entretanto Augusto, um abraço.

 

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