domingo, 12 de agosto de 2012

O HOMEM COM GATOS NOS PULMÕES


António Quadros, um auto-retrato

Há criaturas que parecem ter os nove fôlegos de gato multiplicados pelas cem patas do famoso artrópode miriápode, fadadas para complicar a vida aos demais, apesar da sua ser o simples, condicionado, destino de um rio entre margens; pessoas capazes de trilhar simultaneamente uma e outra margem do rio, segundo o ritmo do coração. São os guardiões do susto – aqueles que com Shakespeare sabem existir mais mistérios entre o céu e a terra do que os que ousamos imaginar, e se entretém a cartografá-los.
António Augusto Melo Lucena Quadros (1933-1994) - aliás João Pedro Grabato Dias, aliás Frey Ioannes Garabatus, digo António Quadros “Pintor”, “fortuito” companheiro de estrada de Mutimati Barnabé João; para além de argumentista (de «O Senhor Ventura», para José Fonseca e Costa, projecto infelizmente nunca realizado); também conhecido como artista gráfico e pedagogo, antes e depois de ser apicultor, reputado conferencista sobre a abelha africana e «descobridor» da Rosa Ramalho; tudo isto incubado no entreacto de privar com incubos e súcubos da língua como o Herberto Helder, o José Afonso, o Eduardo Luís, o José Forjaz, o Eugénio Lisboa, o Rui Knopfly, o José Craveirinha e a Amélia Muge, e de escolher Moçambique para adopção, horizonte e trato -  era uma criatura assim: mais dada ao arquipélago e ao rizoma do que à raiz, com o mistério encravado nas clavículas.
Uma daquelas criaturas diante das quais o país fica aquém, pois, para glosar um dizer de Camilo José Cela (sobre um país bastante maior que nosso), «este país é tão pobre que não dá para fazer-se duas ideias acerca da mesma pessoa».
António Augusto Melo Lucena Quadros, repita-se, foi um espírito renascentista, dos que abominaram a especialização (tendo-a) pelo exclusivo fito de desatar múltiplos saberes para os devolver re-atados, i.é re-ligados a redes conceptuais de outra amplitude. O seu era um nomadismo integrado que visava, por via de uma prática polifacetada, alargar os meios expressivos.
Partia tudo isto de uma curiosidade oceânica, só igualada pela sua propensão pedagógica - tornaram-se famosos em Moçambique os seus manuais técnicos e propostas educacionais, que abarcavam áreas tão díspares como o solo-cimento, a reciclagem orgânica, a gráfica, o cinema de animação ou a óptica. Vocação prometaica comum a quem não se evade no comércio com os deuses, nem ilude na função exortativa do seu canto a tergiversação política: cidadão de uma só dentada, em estuário.
Um criador na esteira desse Corto Maltese que rasgava na mão a linha da vida quando esta não lhe parecia conforme o desafio e a desforra.
Eis a personagem.
Em 1968, o júri do Prémio de Poesia do Concurso Literário de Lourenço Marques, que contava com oligarcas intelectuais de algum vinagre, como Rui Knopfly e Eugénio Lisboa, fica bestificado com a qualidade de um texto que atalhou todas as dúvidas. O prémio nunca foi levantado e só dois anos depois dá à costa o primeiro livro do seu autor, 40 Sonetos de Amor e Uma Canção Desesperada, assinada por João Pedro Grabato Dias. Foi evento que voltou a desconcertar.
Como escreve, na efusiva nota de badana, Eugénio Lisboa, logo neste primeiro livro, está-se em presença de uma «voz singular, ulcerada e mitológica, ensimesmada, onírica, ironicamente realista, brutal, descabelada (...)» e de um engenho traduzido n’ «uma extraordinária “fauna léxica” que a um tempo nos subjuga e desorienta...». Repare-se como a enumerativa adjectivação de Eugénio Lisboa, a quem não faltava cabedal teórico, realça de imediato a inaptidão das habituais grelhas de leitura perante um caso como o de Grabato Dias.
No título, por exemplo, é evocado o famoso livro de Pablo Neruda, mas apesar do voluptuoso domínio das formas convencionais (o soneto) e de uma confiança no poder da linguagem só verificável nos românticos, Grabato Dias entrega-se a um trabalho desconstrutor das inércias poéticas que está mais próximo da erosão «anti-lírica» de Nicanor Parra (um chileno que ergueu a sua obra “contra” Neruda) que do sentimentalismo e da hospitalidade comuns à densidade elegíaca do autor de Canto General.
Grabato, com a naturalidade de quem se persigna, cria neologismos, espanta e travestiza a sintaxe, carnavaliza a língua, tem verve q.b. para vazar baleias no buraco da agulha, entrelaça provérbios com experimentação, sem nunca perder de vista a rima e a métrica. Veja-se Guerrilha em Horas Extraordinárias:
«A mulherinha estava a pedir pega-me
naquele olhar de corna mansa, e então
fiz das tripas menores um coração
embrulhei-o em luxúria e num béguin

impetuoso e urgente, qual salame
perverso a mugir trinca-me glutão
abalei a voar no avião
rotativo daquele olhar. Eu chame-me

cão gravata se não valeu a pena!
Ó licor da vingança, ó bruta cena!
Tinha, enfim, sob a espora, sob a mão

soba espúrio, soba ex-puro a esposa
grata do chefe, e sob a esposa a musa
ingrata dum tinteiro da nação».

O poeta, como assinalou Eugénio Lisboa, surpreendia «sobretudo aquela espécie de crítica que ainda vive agarrada ao sentido literal, filológico, do texto». De facto, não se mete facilmente o escalpelo num texto como Introdução a um pedido de asilo poli ético:
«Olho zanaga olhizaino e duro
labrusco joalheiro de praguedo
inventa o oligarca o medo. O medo
guarda o medo, e o escuro esconde o escuro.

Apreensão de apóstata prematuro
romeu repeso ansiando o ledo
quieto canto matutino, medo
urna do medo, eis-me (...) ».

Este gosto pela fantasia formal, petisqueira e gongórica - com um apego ao vocábulo raro que traz à memória o Eugénio de Castro dos primeiros anos, ainda que em Grabato sejam exponenciais o sentido rítmico e a dimensão lúdica ( havia o surrealismo de permeio) - confirmar-se-ia num livro posterior, Vinte e Uma Laurentinas, de 1971, de métrica vária e acentuada derrisão política:
A lula compartilhada
«Um marrequinha das direitas
comia lulas com um ambidextro
da oposição. Ó pus (cisão
de expectorado rasto no clima
do ódio) como saber-te útil
sem provar-te fecundo? e saboroso?

Comiam lulas, pois, e nos enganos
com que se temperavam no manjar
diziam um ao outro mil enganos
trocavam galhardetes e rosmanos
com esses ares ibérico-hindustânicos
que os portugueses têm a cear (...) ».

Vinte e uma «laurentinas» (é um supor) buriladas à medida que cada uma das cervejas homónimas era regurgitada pelo poeta (como se fosse uma métrica), e dois “fabulírios falhados”, à conta de dois conhaques sem parquímetro. O poeta assume-se como «impuro», inquinado pela matéria (o malte, por exemplo) com que o real se dá a ler, o que inclusive produz a paródia, de inspiração «pop», com que em 40 e tal sonetos de Amor e Circunstância se sublinha a afinidade entre os poetas órficos e os heróis de banda desenhada (outra modalidade da circunstância em que o “tempo real” se consome):
lá mais para o verão
ou
programa de lucky luke
para setembro...

«Luciferinos, quatro irmãos daltónicos
urram no sangue espesso que percorre
campos e vales do meu ripanço. Morre
inviolada toda a tarde e os órficos

andarilhos sibilam I am sorry
no pejado balcão. De olhos alcoólicos
os chacais uivam slogans patrióticos.
Soletro-me no zinco: motel story.

Ortugal City: morte às quatro rodas. (...)»
Era esta a cadência luciferina do poeta. E nesta cadência percebia-se que,
a) em Grabato Dias, a ironia é obstinadamente transideológica,
b)  o poeta visava incomodar pela apalpação do ethos do outro ( - e lembremos de que falamos de antes do 25 de Abril de 74).

Contudo, este lado truculento de calar com o riso («humor, minha automática secreta»), cultivado por Grabato - na casa comum do Abade de Jazente ou de O’ Neill - não lhe esgota o engenho.
Os verdadeiros poetas esgaravatam a língua, até ao desmame. E a destruição da língua é nestes tão importante como a sua (re-)elaboração, ainda que a memória arraste continuamente consigo resíduos parasitários, formas que é preciso abolir. A obra destes autores assume-se então como uma rede fluvial que, vista de helicóptero, à boa maneira borgesiana, desenha os contornos de um rosto.
Enquanto António Quadros pintava e apicultava e se entregava à agricultura, ou às aulas que nunca abandonou, Grabato Dias alimentava um outro veio poético: longas odes, de versos densos e reflexivos, que se estruturavam em estrofes centenares (como diria o Camilo), dobrando os rins à recepção das suas primeiras obras publicadas e às “novidades” formais que estas haviam introduzido.
O Morto e A Arca, «odes didácticas», que o poeta fez publicar em 71, voltam a pôr de borco os numismatas literários. Como classificar um torcicolo tão profundo na imagem estabelecida pelos livros anteriores? Eis o «quid» da questão: a força lúdica com que, naqueles, se desmantelava a palavra e se reduzia à paródia a enunciação discursiva - como se o poeta estivesse investido do modus operandi de um engenheiro naval (um Álvaro de Campos “bricoleur” e profeta do Faça-você-mesmo) - não se esgotava no ardil técnico e adaptava-se, afinal, a outros territórios semânticos e discursivos, de mais farto caudal. Como se as cabriolices do afluente tivessem reencontrado o leito da matriz.
O Morto é um longo poema sobre a experiência da morte, abordada com «o pudor das coisas demasiadas» (oxímoro que o poeta repete em vários livros):
«Como o morto nunca nos diz nada
vem daí o extremo penoso da sua presença
(...)
Colam-se-nos com o suor, à ilharga
e um corujão sagrado de penas de seda, aloja-se
perpetuamente em nossa nuca.
O pio que nunca chega é o castigo
(...)
Somos muitos, somos todos um
mil patas de reverência
(...)
Passa a revoada matinal das rolas
E os olhos de todos seguem-nas, numa alegria sem contexto
até se arrependerem
na orla do pinhal e no tossicar do cura.» (pág 29)

Muito distante da pirotecnia vocabular dos livros anteriores, o poema desencadeia numerosas associações mas desta vez mais existenciais que estéticas. A ode espraia-se como uma onda que surfa numa lenta reflexão, visando claramente um «pathos», pois ( e por aqui se incute o didactismo da ode) só no reconhecimento dos limites (que a vigília sobre a ausência do morto desperta) reaprendemos a exumar as emoções devidas àqueles que por breves estações são os condóminos do nosso espaço biográfico e que a luxuriante despersonalização pelas palavras alienou. Mesmo a noção do ritmo que nos ejecta as palavras é, nesta acareação com o morto, posta em causa:
«Sofrem que lhes fale sem brevidade. Assim é preciso.
Apenas o raio é rápido, apenas o acabar, o cindir
dos elementos é misericordioso embora não fugaz.
Fugaz é o lento subir da sequoia em mil anos
fugaz será o amadurar do cristal de rocha, e eu não diria
ser fugaz um tampo de galáxia se o não soubera.»

Vemos assim como a presença da morte suscita uma nova cartografia para a recepção dosvínculos e para a oleosa exterioridade do mundo.
Da morte individual, da dor privada, passa-se, entretanto, para o castigo colectivo por decreto húmido em A Arca.
N’ A Arca (de Noé), uma suposta tradução do sânscrito ptolomaico com versão contida, Grabato só larga o espaldar depois de trezentas estrofes regulares, de uma densidade conceptual que deixam o leitor exaurido. E alvitre-se já: A Arca é um dos esteios da poesia portuguesa do século XX, um dos raros poemas de fôlego portugueses onde a poesia se aproxima de uma gnose, de uma literatura concebida como anamnese.
Em versos cadenciados por um ritmo musculado que raramente “desborda”, forceja-se – na primeira metade -  um canto “adâmico”, uma espécie de glossologia que propõe regular a vida no seio de uma natureza inaugural varrida pelos caprichos dos deuses e pelo increpar dos elementos. A voz nomeia o mundo e (re)cria uma realidade encantatória, que vai revelando o seu desígnio à medida que mundo e escritura coincidem.
Interrogava-se Octavio Paz num dos seus últimos livros, La Otra Voz – Poesía Y Fin de Siglo, a propósito de longos poemas narrativos, se existe uma poesia puramente terrestre, não contaminada pelas intervenções sobrenaturais e as genealogias divinas. Responde Grabato, na estrofe CXI:
«(...) vos quisera dizer tudo o que sei.
Falei do alto ora direi do chão
vivente que suporta o nosso peso».
É nesta altura que, depois de evocar a influência das estrelas, Noé começa a elegia ao Sol e ao mundo material que o astro banha. E se há assomos de neo-platonismo:
« Toda a sabedoria está em ter-te (ao sol)
dentro da pele com força, igual da força
com que fora da pele tu te derramas.»
(CXX)
o poema prossegue numa toada que se concentra no valor da experiência e nos vínculos à terra e à sua lei.
N’ A Arca, por conseguinte, aquietam-se os lapsos diagnosticados por Paz na poesia narrativa de inspiração épica, podendo-se dizer que, pelo contrário, o Céu e os seus divinos avatares, têm neste poema uma correspondência directa com o “repugnante absinto” que Lucrécio exacrava em De rerum natura. Aliás, assinala-se outra importante semelhança com o poeta romano, para além da “transcrição” das leis da natureza: uma igual resistência ao religioso em contraponto com uma mesma abertura ao numinoso. Grabato Dias chega explicitamente a contrapor aos deuses a ola, imagem extremamente ambivalente no seu conteúdo: reportará a uma panela de barro e ao ofício de conformar a terra ao “sopro” das mãos?;  ao dizer taoísta de que o mais importante na panela é o que ela não contém, leia-se: o vazio?; ou trata-se das folhas de palmeira onde se escreveram alguns livros sagrados na Índia, precisamente em sânscrito?
O que importa é que Noé, o narrador, nos embala numa discursividade que se projecta além da consciência ordinária: tanto as actividades que nos relata (a pesca, a caça, o cozimento do barro, a construção da casa...) como os lugares onde estas acontecem estão impregnados de vibração; i.é, simbolizam experiências do numinoso, onde se está dentro e não mais diante da paisagem. E através deste vínculo dissolve-se a consciência dual, tornando-se o baixo, numa inversão alquímica, igual ao está em cima, tal como o dentro reflecte, por osmose, o exterior:
«Passeando assim nos tempos, me passava
toda a noção de tempo, e o sol, lançado
pela funda das idades, acabada
a alegre trajectória quotidiana
mergulhava ao poente palpitando,
como víscera de cervo, às mãos da noite.(...)»
XLIV (sublinhado meu)
Nada escapa à prova de fôlego que A Arca constitui: da noção indiana de «dharma» ao sufismo, da numerologia à tradição astrológica:
«Pela segunda casa, quando o corpo
é já olhar horizontal de dardo
lançado para a vítima escolhida,
o urano aventureiro presidiu
à sagração do touro (...)»
(LX)

«O sol na quinta casa e a vespertina
marcaram ao leão flamejante
seu terreno de caça. (...)».
(LXVI)
«Na casa seis colhemos e pesamos
desdobrada semente, e a terra, enfim
liberta do seu ciclo noutro entra
de novo virgem serviçal e escrava.(...)».
(LXVII)

Na segunda parte assiste-se à “anunciação a Noé” e à desafectada rebeldia do profeta. Este assume um comportamento digno de Prometeu ou de um Bodhidattva (alguém que estando na via para alcançar o perfeito Estado de Buda e abandonar o Samsara renuncia e faz o voto de conduzir todos os seres sensíveis à via da Iluminação), e descarta-se da sua imagem convencionada de patriarca bíblico. E ante a possibilidade de “safar-se”, de escapar para um espaço edénico, Noé, com a Arca em plena ascensão, abdica, faz a exortação da terra, da sua pequenez e fugacidade, da sua vida a um tempo una e múltipla, e a ela volta. O começo do dilúvio é belíssimo:
«Teve então começo a grande chuva.
Primeiro um pingo grosso e outro pingo
E outro ainda esparsos e sonoros
Como do sobro caiem os bugalhos
Sobre o solo sem erva à sua sombra.
Como ramada imensa, todo o céu
Era uma nuvem só de estupendo
Negrume. E logo como olivas
Sob as varas, em dia de apanha,
Os ovos de gelado humor caíram.»
Neste retorno à terra opera-se uma alteração de grau na consciência do homem que acaba por propiciar a eclosão de novos horizontes abertos, de um novo «fazer-se mundo» como diria Heidegger, de uma realidade de súbito mais complexa e abrangente.
Não sei se António Quadros/ Grabato Dias, na sua sanha de tudo assimilar e incorporar, conheceu a fundo o pensamento sufi, se em noites de insónia privou com leituras de Rumi, Attar, Ibn Arabi ou Saadi – ou talvez o possamos inferir, se considerarmos como sinal o neologismo grafado no Canto DCCLVI de
As Qybyrycas: “Estamos todos embaixo à Grande Mó/ que a todos por igual esmaga a viveza/ e esta razão sufiza o claro dó/  com que mirando a mutual vileza/ nos empenhemos a buscar comum/ entendimento, em todos e nalgum”. O que é claríssimo é que, em Portugal, uma tão vasta “sombra” do pensamento sufi numa obra só tem lugar em António Barahona da Fonseca, que por seu lado conheceu uma conversão islâmica. Ainda que seja uma coincidência de percurso é visível no poema uma íntima familiaridade com a “penetração holística” dos sufis e algumas das suas imagens/conceitos. N’A Conferência dos Pássaros, de Fariduddin Attar, por exemplo, um clássico persa do século XIII, os pássaros, que representam a humanidade, são convocados pela poupa – o sufi – que lhes propõe encetar uma busca afim de encontrarem o seu misterioso rei, que se chama Simurgh e vive nas montanhas de Kaf. Depois de muitas discussões e aventuras lá partem e não se dão conta de que todos juntos, voando em bando, desenham a fisionomia do mítico Simurgh, o rei que tanto procuram. Não dão conta porque cada um deles está obnubilado pelo ego e não atinge a visão do Todo.
Num dos excertos mais visionários de A Arca, esta confunde-se com o corpo de Noé e há uma clara afinidade em relação à figura de Simurgh, em Attar:
CCXXXIX     
«Á minha espádua destra tinha o potro
e à sinistra o touro. Em meus ombros
sustinha o mocho albino e o vampiro
sugador sanguinário, tão sem culpa
como o pombo torcaz em minha fronte.
Vestiam as carochas e os ácaros
meu ventre, e as sanguessugas se pegavam
à pele menos gretada de entre coxas.
Pequenas borboletas e untuosas
lesmas, eram rios de vida em minha

CCXL   
espinha. Afogavam meus olhos brandas
sombras de larvas gordas, como pálpebras
cansadas, e as formigas descobriam
meu quente formigueiro das entranhas.
(...)

E já não era mais que um estranho ser

Nem homem, nem insecto, flor ou verme.»
Esta energia da natureza congregada num «único querer determinado» – nem homem, nem insecto, flor ou verme, mas a soma disso ao mesmo tempo e outra coisa já -, tal como sucedia n’ A Conferência dos Pássaros, não configura exactamente um ser de síntese mas antes um retorno ao arquétipo; perfaz o trajecto da intuição à organicidade da Ideia, à medida que se iluminam as sinapses. ( Este processo é o mesmo que António Quadros utiliza nos desenhos de computador por exemplo, onde se parte da simplicidade das formas ou de imagens ainda “desfocadas” para uma crescente definição e complexidade, por adição das partes e rearranjo do todo, método já sinalizado em 40 e tal Sonetos de Circunstância...: «Percorro um itinerário de palavras/ rumo ao estratificado». Não se trata exactamente de uma evolução nas figuras mas de uma sua paulatina sedimentação no mold(e)(lo)).
Poder-se ia ainda falar de uma genealogia que tivesse apeadeiros em Lautréamont e no budista Dogen («Esquecer-se de si mesmo é ser certificado por todas as existências», diz este último), mas faz-se tarde. Retenhamos que A Arca, na sua inscrição cosmogónica, é infiltrada por uma crescente e subtil imprecação prometaica, fluido mercurial que na última estrofe eleva o cântico a uma rebeldia que não deixa intacto nenhum tipo de autoridade: «Filho rebelde ao pai, sê-lo-à aos deuses/ e, do humano, é penhor futuro».
Em A Arca já Grabato Dias dá asas a um dos seus jogos favoritos: o dos projectos apócrifos.
Em 1975, António Quadros abandona as colmeias por instantes para deslocar-se à sede da Frelimo, afim de dar um parecer sobre um caderno de poemas de um guerrilheiro morto em combate, de nome, Mutimati Barnabé João, que fora devolvido por um escrupuloso soldado português.
É um conjunto de poemas belíssimos, de um “epicismo” popular e marcado pela experiência da guerra. Os poemas decalcam uma sintaxe eivada de inversões, algo acrioulada, e emocionam pela facilidade com que a simples lógica-paradoxal de Alberto Caeiro ganha brilho nos olhos de um guerrilheiro que tivesse tido umas rápidas leituras de Brecht. Mas em quem, ainda assim, permanece num certo encantamento mágico do mundo, como se vê no poema que se intitula Ar Condicionado:
«Estava um dia voando à altura da Lua olhando em baixo                                            Indo muito depressa para o Norte e estava sabendo
Que faltava alguma coisa à minha pessoa
Estando um dia olhando a Praça Vermelha de Moscovo (Rússia)
Estava com os camaradas do meu curso e estava sabendo
Que a pessoa minha melhor não estava toda.

Estava um dia vestido de branco na neve
Bafando devagarinho entre os dentes e estava sabendo
Que alguma coisa subtraída da minha pessoa
Não estava de acordo.
...................................................................................
Estou inteiramente na minha pessoa muito quieto
Deitado de barriga na pedra quente debaixo do sol quente
Olho o embondeiro, o elefante, o morro de pedra
São feitos do mesmo material cinzento muito velho
Estão os três de acordo.
Estamos de acordo os quatro.
Estou finalmente de acordo.
(sublinhado meu)
António Quadros - que foi sempre alumiado pela convicção de que a poesia não celebra, transforma - “foi sensível aos poemas” e abonou-os, fazendo a capa do livro. Cresceu a lenda. Eu, O Povo converteu-se em poema nacional moçambicano, num hino, e embora multiplicasse os desmentidos, o poeta de A Arca e O Morto não conseguiu descartar-se da suspeita de ter gerado um heterónimo; sendo quase sempre notificado como o autor desse conjunto de poemas. Na realidade, eu vi os manuscritos redigidos pelo poeta, mas esta questão do estatuto da autoria só tem valor para as questões académicas. Para quem encarnou a ideia de que a força de um simples provérbio está no seu anonimato, esta questão é bizarra. E, em vida, Grabato nunca cedeu à vaidade de se identificar como Mutimaté – proeza de que poucos se gabariam.
Consequência ou não, anos depois, o próprio Samora Machel convida-o a participar num guião para uma obra colectiva que tivesse como glosa Eu, O Povo. Resultou da gorada experiência o livro O Povo é Nós, escrito «à maneira do mestre Mutimati Barnabé João». E em prefácio, Grabato introduz a “falácia“ comum a todos os demiurgos: «Falo por vozes emprestadas». Aliás, já antes, em 1974, no longo poema Pressaga, que canta a promessa da independência, depois de citar quase a totalidade dos poetas moçambicanos, Grabato Dias deixara cair, à laia de programa:
«Toca a abrir o olho e a afiar o dente e a preparar
o poema comum que há-de sair em livrinho barato
à escala dos simples que é o que não somos
     e ao entender das crianças que é o que ainda soubemos não esquecer...»,
Contudo, o seu hipotético crédito quanto à «invenção» de Mutimati, advém de trás, da homérica façanha de escrever um poema camoniano em oitavas e em onze cantos, As Quybyrycas - poema éthico em outavas - ( primeira edição de 72, do autor, e segunda da «Afrontamento», em 92); pendência que o deu como albatroz capaz de soletrar os ciclones.
Um poeta tem sempre o carácter dos dentes com que aferra. Em 72, como se explica no prefácio paródico de Jorge de Sena, Grabato Dias «descobre» um manuscrito com uma dupla atribuição: a Luis Vaaz de Camões e a um obscuro poeta quinhentista, por acaso antepassado seu, Frey Yoannes Garabatus. Distribuído por onze cantos, em oitavas, e com 1180 estâncias (saído à cadência com que o poeta erguia tijolo a tijolo uma casa na sua machamba), propõe-se o poema  cumprir a promessa feita por Camões ao rei D. Sebastião de continuar os Lusíadas. Relato da vida, dos feitos e da glória de um rei que se metamorfoseou em nevoeiro, contado por quem foi seu confessor real e o acompanhou à inglória jornada de Alcácer Quibir, o poema renuncia às perspectivas mitológicas e desce ao «povo meúdo»:
«E a vós do Olimpo, as fartas gordas lapas
que já do grego usei, renego agora.
E vós Tágides minhas pois ganapas
vos tive, eis que por velhas deito fora.
Adamastor, sumida está dos mapas
a derrota antiga que outra é a hora.
Que para explicar o error luso
mais que um error divino será de uso.»
(Canto Um).
Invocam-se deste modo os fados para se falar do horror dos aflitos, extraviados por naufrágios (belíssima a sequência do naufrágio - o Sepúlveda?), pela peste, pela penúria propícia aos nado-anjos que são os lusos filhos da crendice, e pelo relaxe com que os autos-de-fé animavam o ardor cristão. Em photomaton presenciamos a demência de Sebastião, desde os cueiros aos cinco cavalos que delapidou na batalha. Belos como visuais os versos que recobrem o combate:
(MXCVII)   
   « Suplicam-lhe que fuja. Já não escuta.
      De novo investe o mar de carne bruta.»;
«(...) e o rosto inteiro
É um jardim de sangue vivo e grosso
pastando-lhe na barba de mimoso»;
(MC...)                                              
«(...) El rey avança
desmembrando e talhando sem entravos
como se o não vissem ou a vê-lo inteiro
não o acreditassem verdadeiro

O poema procede, evidentemente, a um lento desmantelamento do mito heróico português, e aos planos arquetipícos e à harmonia preestabelecida que ordena sempre a poesia épica, contrapõe o sarcasmo, o amplo espectro da baixa índole, a prosaica musiqueta que (apesar da “espirituosa” perfeição da rima) ilustra a mesquinha e material motivação humana. Frey Ionnes Garabatus procede como um leitor de François Villon, um topógrafo dos tremores colectivos que nunca confundisse a alma com os abrolhos vulcânicos do terreno.
No Canto Quatro, profético, deslinda-se o propósito do poema:
«Se algua herança deixo seja esta
inquietada e interrogativa
questão com que perturbo toda a festa
em que a vida se finge estar mais viva
milhor mimando a morte na funesta
canção do muito erro e recidiva...
...Antes um filho inquieto que a moleza  
 desta apagada, vil, ruim tristeza.»
O mesmo voto de rebeldia aos deuses, reis e mitos, que se encontrava n’ A Arca, o mesmo apelo à coragem cívica de interpretar o fluir e os descaminhos do mundo (leia-se país). Razão para o poema não se dar como épico mas como «éthico».
Facto/ Fado - piqueno tratado de morfologia, parte VII, lançado pelo poeta em 1985, é uma pletórica descida ao espaço da infância, mas à maneira de Wordsworth, com aquela a ser pretexto para uma meditação sobre a escrita, as suas dobras e avatares.
Duzentas e vinte e sete páginas de um matagal auto-reflexivo, nas quais, ao contrário do que recomendava Pound, com um máximo de concentração e um máximo de palavras o poeta explora o seu húmus: inconsciente e biografia atados numa só urdidura. História objectivável e sujeito reminescente imbricam-se, perseguem os seus loci memoriae, ou então convertem a matéria da vivência numa entidade estranha, de ardilosa morfologia, que é preciso sondar. Grabato, que ao contrário dos outros meninos não descobriu o alfabeto nos jardins-escola, mas na sopa, nesse fluido movediço, narra como aprendeu que o lugar ocupado pelas coisas é instável, ou antes, é amorfo, cabendo à palavra operar como o interruptor de intensidades, ainda que nada altere a intransitiva identidade das coisas:
«Não há no que consentimos substituição ou desvio.
Somos a pedra, o punhal, a bala
Mas nunca bala por punhal, punhal por pedra.» (pág. 73)
E não obstante a base infinitamente divisível da palavra relevar o seu carácter ilusório, tornando-a defectiva - «As palavras não redimem as coisas. Nomeiam-nas./ São a coisa, restando sempre outra coisa aquém disso», pág.11 – ou mesmo suspeita - «Não faz sentido falar da rosa sem primeiro falar do rato», pág. 17) - ; por outro lado esse feixe novo de intensidades instaura uma necessidade (assim como o vazio propende ao cheio), imprime uma memória e entranha uma visão:
«Se partirmos das palavras, do sítio onde estão
No vento, nas bocas emitindo, no dicionário

E as colhermos pelo que são – bonina ou orquídea –

E as aceitarmos no seu justo imenso poder
E as dispusermos legíveis entre núpcia e emboscada
Não há mais problema:
A ideia que lhes pertence desce e devora-as
Como um gavião numa ninhada de pintos.», pág. 55

O que tem um efeito sobre a própria vida:

«É a vivência o contá-la
já depois de acontecida?», (pág 230),
E, por isso, se a palavra não é ainda um lugar sagrado é um refúgio, a arca possível:
«Meu Amor, como pensares-me morto e ser triste?
Estive sempre em viagem. Só agora regresso.
Usa o teu sorriso. Tira o coração da arca
De entre os linhos, alfazemas, naftalinas
E usa-os no domingo de todos os dias do ano
(...)
Estou catando os cachorros, apanhando limões
Abrindo a colmeia no fumo cheiroso da bosta seca.
Sorrio, pela primeira vez, sem comandar os lábios
Com o esticar dos fios da complacência doméstica.

Destrinço o sexo na ninhada da velha coelha

Virando de barriga para cima os veludos das crias.
Espero daninho o teu regresso, acocorado no verão
E, porque cheguei ao verso, estou vivo» (pag. 162).

Sagapress (1992), último livro publicado em vida pelo poeta, curiosamente uma recolha de material heteróclito com datas anteriores (76/80) à feitura de Facto/Fado (82) dá-se a ler como uma espécie de isotopia deste. Uma pulsão diarística e um prosaísmo reflexivo associam-se neste livro à oralidade, numa espécie de dança em falsete: «(...) poetar é esta dolorosa cartografia (...) fractando em detalhe, perdendo em singeleza.»
«Que lugar ocupa o pássaro descuidoso?», pergunta às tantas o poeta e estes versos de uma poderosa armação lógica, que já não ponderam o disfarce de uma beleza consentida, canónica, ou a música da métrica, apresentam-se sem amenidades estéticas ou forros de seda, como artefactos, entreactos, pássaros mecânicos de ritmo manco, espelhos refractados pelas ásperas texturas do real, ou até como “comunicados de última hora” (- e assim se chama o seu último capítulo). Uma espécie de diário noticioso do poeta, num momento em que para o país (Moçambique) a informação é tudo e onde o vate dá conta, no confronto com a realidade, das alterações climáticas da sua alma.
É evidente que um projecto destes não pode ser senão um emaranhado de linhas soltas, peças de puzzle que um vento adverso desuniu, fragmentos de proveniência, inspiração e intencionalidade muito diferentes. Podem contudo recensear-se alguns dos seus temas obsessivos: o tempo (e nem de propósito todos os poemas são datados), o estatuto do lugar (e metade dos poemas têm o seu embrião localizado), o movimento (interrogações sobre o ritmo e os trajectos de pessoas, bichos ou coisas são constantes), o poema e a sua ontologia passadista («martelicando maneirismos»), os naturais comentários à vida política - que aqui se vazam em poemas desiguais e em versos eivados de desencanto  («...Chatice e facúndia. Ó manas alegres!»). Há poemas  de uma dimensão puramente conceptual, quase abstractos, que parecem visar unicamente desmentir a presença da emocionalidade (essa transitividade dos vínculos que nos melhores momentos voltará a cunhar os aspectos referenciais de Facto/Fado).
Vejamos agora este poema, escrito na Machava:
«São leis físicas quem rege o pensamento.
(...)
Ponho uma velinha no altar de São Newton
enfeitado a maçãs camoesa bordadas a ponto cruz.
Digo: - Obrigado velhote, pela teoria da luz!
E continuo a rebitar versos cu com cu
beatamente repleto de lei moral em caril
e um pouco chateado pela rima imprevista.

Toda a alteração da regra conduz à regra.
Não há nada a fazer. É assim.
Todo o sentimento acaba por ter peso e medida
a tramar-se visível na teia das rugas.
(...)
É inquietante ter de viver consciente da vida.
Nunca mais estar vivendo apenas, passando só
pelas fracturas das brisas (...).

A museologia exterminou a fábula, e os mitos
saem das linhas de montagem já enlatados.
Consumo imediato: rótulo encarnado.
Rótulo verde: ração de combate.» (de 10/7/76)):
É o desabafo mordido de quem já não crê em nada e atravessa uma fase de desalinhamento e prostração. Lembremos que os poetas rapidamente se desiludem com as Revoluções e o afunilado “pragmatismo” do Estado. António Quadros implicou-se como pedagogo, intelectual e arquitecto de prodígios no processo histórico que se pôs em marcha com a independência de Moçambique e é provável que a generalizável incomodidade que se sente no livro provenha disto: Grabato Dias empreendeu durante anos, como poeta, uma luta contra o sacrifício do Homem à História. Por isso o seu foi sempre o território do mito, da fábula. Com o comprometimento na dinâmica social do país o poeta ia sendo engolido pela História. Inspirado por uma táctica leninista acabará por dar dois passos atrás para recobrar o balanço do próximo salto à frente, e aí focaliza-se na infância, cura-se pela mais arcaica afectividade da memória. Em Facto/Fado.
Tornaram-se pois, premonitórios, estes versos de SagaPress: «Tanto tempo a andar em redondo para acabar nisto:/ Ter esquecido a única coisa que soube algures realmente
Sagapress, no entanto, apesar da sua tónica mais prosaica e “filosofante” tem momentos de apetecido humor e leva a um extremo vibrátil a inquirição sobre o fingimento das emoções poéticas e o lugar de onde emana a palavra:
«Um grande filósofo que também era um poeta menor
disse certa vez que a Poesia vinha de dentro das palavras.
Eis que venho à ribalta, eu, um filósofo menor
(estão a topar?) afirmando que se chega à Poesia
vindo do lado de fora das palavras
percutindo-lhe a casca a verificar se estão ocas
e cuspindo-lhe para que brilhem e façam vista
com um visgo destilado de cuspo de rouxinol
que as cola umas às outras em ordem adversa,
que é necessário reinterpretar da direita para a esquerda
até achar um significado adequadamente impreciso e imprevisto
(15.6.76)
Santo escrutínio de uma perplexidade que nunca soube estancar.

Grabato Dias nunca se encobriu. Foi prefaciado por Jorge de Sena, Eugénio Lisboa, Fernando Namora e cantado por José Afonso e Amélia Muge. Sempre escreveu para ser lido, ainda que em edições de autor.
E, não obstante, pode afirmar-se que para três gerações de leitores é um completo desconhecido e para as mesmas de críticos (a avaliar pelo silêncio) é um poeta intratável.
A sua atitude, como criador, poeta ou pintor, foi sempre a de um polinizador de mitos e o seu “volume de trabalho” assusta o leitor apressado, o que em parte explica o desafecto de que é vítima.
Em meados dos anos 80, Joaquim Manuel Magalhães, em nótula curtíssima sobre a sua obra, lamentava que a sua vocação fosse por azar heteronímica. É, em nosso entender, um juízo um tudo nada precipitado, pois com os anos, apesar do comércio em Pessoa, até a heteronomia (como já foi estudado) adquiriu ambivalência, mise en abîme.
Ao contrário de Pessoa o tornar-se outro ganha em Grabato contornos de uma polifonia irónica. Em Pessoa desembocava-se numa dicção em solilóquio das múltiplas personalidades que o habitam: o leitor não participa do jogo. Com Grabato locutor e intérprete entrelaçam-se e instaura-se um outro plano no jogo da heteronomia: o do leitor, nos múltiplos papéis que este é obrigado a desempenhar face à sua convocação permanente, quer para o reconhecimento dos códigos, quer por via da provocação (política ou estética) a que é sujeito: «Um cão ladrou, alguém riu e entrou no verso/ vindo naturalmente de um anverso de pão de ló».
Por outro lado, Pessoa chamava aos seus heterónimos «essas figuras minhamente alheias» (como se lê na nota introdutória às Ficções do Interlúdio), o que os reduz a personagens da “prosa dos seus versos”. Grabato Dias nunca assumiu a criação de Mutimati Barnabé João, anonimato que confere ao poeta-guerrilheiro uma consagração mítica; ser-lhe atribuído ou não Eu, o Povo já faz parte da lenda, não é uma plausibilidade retórica. Ou partirá o seu escândalo do facto de não ter reivindicado a autoria?
É verdade, isso sim, que a sua poesia tende a necessitar de «modelo», por ser um exemplo em carne viva de uma energia que se nutre secreta e dialecticamente da tradição. Mas como pode o poeta contemporâneo proceder de outro modo nestes tempos em que «a palavra» foi furtada à inocência de cantar ou celebrar o homem, ou Deus, dado que «tudo se tornou problemático, a começar pela linguagem» (Nicanor Parra)? E não tem sido essa a prática nestes anos recentes em que tanto se bradou por uma poesia da partilha, de retorno à tradição? Grabato Dias teve sempre como criador uma atitude de confluência, e terá sido de entre os grandes poetas da sua geração um daqueles que mais reagiu contra o eclipse do teor e mesmo da recepção “universalista” da poesia. Por isso sempre quis ser cantado.
Há outra explicação: a poesia de Grabato Dias não autoriza a passividade do voyeurismo; de uma estirpe outra, predadora, canibal, abala a mansuetude dos salões. A tradição, fonte onde, como Quíron, sorve da sua própria imagem, é nele uma natureza posta à disposição para ser digerida, assimilada, reinventada, e nunca objecto de reverência (Grabato contou-me que à insistente pergunta de um poeta – Gastão Cruz ou Assis Pacheco, já não recordo – sobre se havia gostado dos seus versos respondeu, para desagrado do outro, “gostei tanto que já incorporei”). Grabato mergulhava nos rios para lhes desviar a corrente e interpelar os próprios reflexos.
Por último, dá jeito não se saber a que país atribuir-lhe a sombra.
Isto, sem contar com o riso, um movimento de alma que ainda não se curou de maldito. Como se lê em Saga Press:
«Então há deuses? Claro que há!
Do lado de cá, do lado de cá.

Viram?

Não há nada como ser desonesto!
Exorcista devia ter cartão e sindicato».

O seu tempo chegará, e do mais nos resgate o siso!

PS. Meu caro António Quadros, um pedido: quando estiveres a explicar ao Nabokov, «Não há apicultura de solitários. Nunca vi um só misógino, apicultor», importas-te de perguntar-lhe se a caça às borboletas tem defeso?

3 comentários:

  1. Foda-se, este é para imprimir. Obrigado.

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  2. Excelente, António. Também vou imprimir porque gosto mais de ler em papel, e tenho de reler. Obrigada.

    Aliete

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  3. Grande texto, pá. Já tardava, o Grabato...

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