terça-feira, 14 de agosto de 2012

AS VÍSCERAS DE DEUS/ Luisa Futoransky

LUISA FUTORANSKY (1939) é uma premiada poeta argentina com vocação para andarilho, que, depois de ter vivido vários anos na Europa, de 76 a 81, viajou pelo Extremo Oriente, tendo ensinado régie de ópera em Tókio e trabalhado como redactora e locutora na Rádio Pequim. Os poemas que aqui posto pertencem à sua antologia De Onde Son Las Palabras, da Plaza & Janés, 1998. As versões são minhas.
OS QUATRO GINETES DO APOCALIPSE

o meu coração pastou em ervas de todo o mundo
o meu coração que ouviu como uma mão estalava
em noites de lhe ser embotada a fala por uma lua rubra, alaranjada, azul, branca
o meu coração que enxergou barcos grandes como cabeças de alfinetes
nos remotos confins dos oceanos
e trepou costas acima e largou a tempo e inoportunamente as roupas interiores

 e na meseta de oruru pensou quando a meseta de pamir…
mas dizem-lhe agora os chineses que descer é mais difícil que subir
e de voltar nem falam

sorveu o meu coração o esperançoso vinho de todas as superstições
pela vontade de que as quatro pessoas
que estão na bússola e são ventos
fossem uma, para que minha mão lhes acariciasse o rosto,
um rosto silencioso, curtido, de oito olhos
que me brindaram com o que hoje só me chega com a orvalhada

o meu coração queria também dançar um tango
com os quatro ginetes do apocalipse
porque para dançar o tango
há que ter confiança.


OFÍCIO DE FEITIÇARIA

Há que comer um coração de tigre impúbere
para manter afiadas as garras;
há que chegar ao centro da estepe
e cortar a língua ao lobo esfaimado
para poder falar com a lua;
só peregrinando com os tarahumaras
abastecemos luxuosamente o silêncio;
há que sofrer o cio de todos animais
para conhecer os ritos do amor.

Iniciada enfim, mulher,
vai ao encontro do teu homem
e caminha ao seu lado no término das estações;
mas nunca voltes a cabeça para relembrar a tua inocência
porque com ela alguém prepara
um novo sortilégio.


PECADO MORTAL

Desejo
o boi,
o asno,
a janela,
a batente,
a toalha que o esfrega,
o resto do seu prato,
a Ele, sim;
Ele, que pertence,
já,
à minha próxima.


RAZÃO DE ANATOMIA

Beijei poetas, pintores, cineastas
empregadas, princesas judias, gatunos, hippies
engenheiros, tenores, guerrilheiros

cruzei na minha boca todos os caminhos da vida.

É tempo de ocupar-me dos meus pés.

ENVELHECIMENTO

1
Sei agora que não basta
encontrar uma estrela fugaz
ou uma moeda romana debaixo dum pote
para ganhar o dia.
2

Avelhesinto
ou
sendo em vez de sinto?

Emvezdesinto
igual
a sendo menos sinto?


AS VÍSCERAS DE DEUS

Sei que está para chegar e apronto-me para a batalha
noto-te, vizinhança do poema, noto-te nas coisas que se afastam
tudo pode postergar-se menos isto
é esta habitação, é esta palavra
sou eu desde que nasci
com cada uma das cicatrizes que deixaram os rostos na minha vida
com cada um dos dias que não voltarão a repetir-se
cada palavra que se pronunciou
e a soma de todas que se deixaram de pronunciar
todos os sonhos imersos, esquecidos
os remotos sinais da divindade
as serpentes que a alguém devoram
ou, nas grandes épocas de estio,
que alguém pode devorar.

O poema, esta Grande Ópera a que não faltam as marchas triunfais
os punhais de lata
os anéis com fundo secreto para guardar o veneno
as traições
as perucas
os sonâmbulos
os divos
os dragões de celofane
os verdadeiros dragões
os polifemos com o seu único olho vazado
deux ex machina

vem comigo deus
vem a este quarto
espreitar o que o poema é.


DE PROVENÇA

 Amo as cidades dos outros
partidas ao meio por um rio
cada margem com as suas particulares ambições e desalento
um segmento do Ródano que aqui pronunciam ron
como a repetida onomatopeia de animais,
diz que domésticos, extraviados de carinho e a insular bebida do Caribe

Cidade esta, Arles, de comerciantes e burgueses
de profissões chamadas liberais, que, de abertura,
se ficam por uma estreita, irrespirável greta no crânio,
com alguns árabes para os trabalhos que repugnam os nativos
e turistas sem sol nem mistral,
em suma, de menosprezo sem remédio ao estrangeiro.

Conheço, por arrastar-me em trechos crepusculares
algumas de suas varandas de poucos rostos,
um, por exemplo, associado para sempre a dois gatos
de um velho estático, incrustado em boina e cigarrilha,
os gatos parecem dourados
como tanto agradavam a um amigo morto
e eis à mão o estranho rio cuja cidade
vá-se lá saber porquê, volta as costas
às suas quimeras.

Adoro também demorar-me a divagar
rente às feridas e transformações
dos muros expectantes
erodidos pelas paixões mais graves
já que das paredes se exala sempre um cheiro a notários
herdeiros e inimigos.
Enclausurarão por isso desta forma as janelas?
Quererão guardar todo o ódio para si?

O Hôpital Dieu onde Van Gogh e eu dormimos
carrega ainda o ar de urinas e incontinências dos loucos e dos mortos,
os nossos vizinhos retorcem as mãos com o pesadelo
e a rua principal cobriu-se
de saldos e de guardanapos com os vermes
de todos os Mac Donald’s do mundo, uni-os.


 A Ponte dos Leões, arrombada por modernos cataclismos,
conservará uma imagem do último abandono
porque já ninguém cortará jamais orelha e rabo em nosso nome,
talvez, com cuidado, no espelho das fúrias
um por outro pêlo, inoportuna lembrança de naufrágios,
torpezas e ternura que tenazes persistem, sob
as palmeiras selvagens daquela, única, extremidade.

O Ródano desfaz-se nas minhas mãos
e os olivais recortados
deste povoado mediterrânico
evocam o melancólico e perecedouro
de todo o afã.

As sementes de girassóis
que adoram as catatuas brancas
das fábulas sangrentas
os girassóis, os girassóis
bah!


DERROTA TIANANMEN

 A lua perdeu séculos em Pequim esta manhã
esta manhã

a lua            (o sol, as estrelas, todas as pedras das estelas, as bússolas,
                    o torno e o forno de cozer a terracota, a crista dos pássaros em
                    chamas, os raios e centelhas das bicicletas e o último
                    cotão de pó que escondeu a unha)
em Pequim  (laca brilhante da Cidade Proibida, um rumor de falanges,
                    falanginhas e falangetas, um cortejo de bubões e de gânglios
                    que rebentaram em Pequim, Pequim a sanguinária)
perdeu         (os órfãos grãos de arroz abandonados entre os restos fumegantes
                   do Museu da Longa Marcha e a lua que bruxuleia no caprichoso traçado
                   da Grande Muralha por fidelidade ao único monumento que desde
                   os primórdios e no nosso tempo testemunha o suor e lágrimas
                   do homem, esquecido por asco e vergonha no fragor da dor)
a sua madrugada

quantos séculos perdeu a lua em Pequim
esta semana?






1 comentário:

  1. Do melhor que a literatura argentina nos pode oferecer. Futoransky é uma grande senhora das letras latino americanas

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