sábado, 12 de novembro de 2011

O NÓ DO PROBLEMA: A SÓS

o beijo, robert doisneau

`As vezes perguntam-me, porque foste tu para Moçambique? Eis a resposta:

1
Só de um estado se entra
e se sai. Em ti,
contigo, ouço
a batida do meu sangue.

Julgo-te atrás de mim
e desfechas à minha frente
um mar de assoalhadas,
és o pavão que abre

o leque e recolhe
a paisagem.
As formas

encobriam
a realidade.
Antes de ti.

2
Antes de ti
tentava mudar a vida
e o mar era a viseira
que resguardava o rosto.

Antes da compreensão
de que a pele
é a ombreira

onde se recosta
a que mira o horizonte
e trinca a maçã

reineta. A tua
dentada
na polpa
que me adoça.

3
Não há memória
nem passado.
Há a forma
como cantas

e o aceno
de te escutar.
Modos de evasão
que crescem

para dentro.

4
Antes de ti,
só nos objectos
despertava.

Na extensa respiração
dos talheres.
No bocejo dos anéis.
No jogging dos ponteiros.

Antes de ti,
na ponta dos dedos
nascia uma ilha.

Ataduras que isolam.


5
Dois cientistas trabalham num laboratório
Um deles toca a mão do outro
e faz uma descoberta: “este
é o meu corpo”. Transmite

ao outro a equação, explica-lhe
que combinações realizou a fim
de obter o resultado. O seu companheiro
deve ter confiança no que está a receber.

Mas recolhe uma informação em segunda
mão. Então toca na mão do outro
e repete: “este é o meu corpo”.

Depois toca-lhe o braço.
Etapa a etapa trocam
de lugar. Então desperta

6
Distintos ecos
mas só em ti
a montanha se faz sopro

e a minha boca é
presença a si mesmo


7
Por cima da amendoeira
os cirros,
debaixo
a carne,
sobrenatural,
que me restaura
os dedos
como à água nas cegonhas
o voo.

8
Contigo: seguindo-me
a mim mesmo
sem nunca me preceder.
Sem ti: os cães da noite
batem portas
no meu espírito.

9
A tua ausência
escarpa
o ar,
pesa ancestral
nos reposteiros,
ilumina a sujidade
dos abat-jours,
ressoa nos livros inertes
como palha,
sorve o silêncio
da casa, atento
inconfidente
a si mesmo –
pela primeira vez
imaterial.

Aquietar
o coração se nada
na sensação é fixo?
Só o olho da rã
acompanha a velocidade
dos movimentos
em ziguezague,
hipótese
que Deus
me sonegou.

A minha intimidade
(a tua pedra de toque )
migra
e ar-
-de
a Oriente.


PARTIR, O FORMATO LÍRICO

Será possível que o meu corpo
tenha afinado a lupa
que a tua pele refractava?
É esta a condição do homem:

a sua fronde não esgota
o ciclone, a sua inclinação
para a morte não desabitua
a Primavera. A estação

dos outros, quando não estás.
Eis-me afeito a partir.
Já não receio ferir-me no cabo

em marfim do destino,
no vestígio vivo que alumia
o passo no gume da manhã.


RIR, COM OS NERVOS DA CHEGADA

Reveja-se o zombie jubilado a sair do avião.
Reencontra-a após cinco meses
de lameiro como vegetal irregular,
e interroga-se: “amo esta mulher,

que frutos arborescemos juntos?”
Abraça-a, enguia miúda, e espanta-se
pela sua nova madeixa branca (o que só
lhe realça os olhos), enleado na doçura

do sorriso com que ela armou o laço
à sua alma apardalada. Imagina-se
fora de toda a distância, sobre a pele

das Índias, como alguém que é orfão
e ao amor pede desplante: o lúbrico
e paleolítico estoiro das fronteiras.

 

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