Acordo de noite, sufocado, com ânsias de um filmito. ‘A míngua aqui vos deixo uma serie que escrevi por ocasião dos cem anos do cinema:
O ECLIPSEde Michelangelo Antonioni
E a coroar todas as suspeições havia o exame derradeiro: passar pelo crivo de um filme de Antonioni e sair com o «gosto pela arte» incólume, com algo de pneumático a saciar a alma. Gostar de Fellini, ou de Truffaut, ou até de Marco Ferreri - nesses distantes idos de 70 em que Dillinger Morreu provocava levantamentos populares na plateia - era simples. O difícil, para um aprendiz de cinéfilo com leituras de Camus e que farejava Foucault, era aguentar a parada antonioniana sem fazer «bluff».
Quem assistia a O Grito, ou a Deserto Vermelho, ou, no extremo, a O Eclipse - sem o sentimento de ser o coração de Lola Ferrari no momento em que é atropelado por um seio demasiado amplo para o seu âmbito - é que podia ser considerado um cinéfilo impenitente. E se, aos 15 anos, a minha perplexidade esbracejava diante da «durée» dos planos ou daqueles diálogos à beira de recusarem a comunicação, o primeiro abanão a sério levei-o quando Antonioni, em O Eclipse, faz parar o bulício da Bolsa de Roma - uma verdadeira selva enlouquecida - para registar um «minuto de silêncio» em memória de um corrector falecido.
Se Ferreri - contra a fúria dos meus amigos - me deliciara com os seus tempos reais em Dillinger Morreu, sobretudo na cena em que Michel Picolli nos ensina a fazer uma tortilha (ou seria um bife à café?), Antonioni, nessa sequência, rejeita a elipse e eclipsa os dogmas mais persistentes da muito oleada máquina de cinema de Hollywood, pois esse minuto de cinema consagra exactamente um minuto de não-acção. Hoje, ao ler em George Steiner (Barbarie de L'Ignorance, 1999): «La dignité de l'homme pour moi consiste aussi dans l'inutile, dans le fait que n'est pas rentable une grande pensée... E lá où la censure est celle du marché et des mass média, elle peut-être plus efficace que celle des idiots de la police secrète, qui se trompent, mais à quel prix?»... anuo, acenando a cabeça, mas devo a Antonioni e a essa lição sobre o poder expressivo da «inacção» saber o que se coloca em jogo no alarme do crítico.
Há uma «nuance» aqui: na verdade, o silêncio é suspendido por cinco segundos, para ser explicado por Piero/Alain Delon a Vittoria/ Monica Vitti porque é que na Bolsa «um minuto custa milhões». Nessa breve e impaciente interrupção sela-se a metáfora do filme. Vittoria, uma jovem mulher, rompe com o seu amante e encontra-se sozinha e desamparada. Procura o conforto junto da mãe, mas esta só pensa nos seus negócios na Bolsa. Conhece assim um jovem corrector, que a tenta cativar. Mas Piero depressa denuncia a sua venalidade, e resta a Vittoria a solidão e - o que é magnificamente dado numa cena nocturna, na qual uma deambulação sem rumo definido leva-a a «reencontrar» os pequenos ruídos que compõem o silêncio da cidade - reconciliar-se com a escuta do “inescrutável”.
O fluxo ininterrupto das movimentações na Bolsa sinaliza no filme a tendência para, nas sociedades contemporâneas, se ensurdecer à sombra do «luxo da comunicação» - ao mesmo tempo que «as velocidades contemporâneas» submergem numa sensação de inactualidade os nossos códigos sentimentais.
O sistema, que até sobre «valores virtuais» especula, forçando uma mais-valia, evita um vínculo maior, que é o da partilha desinteressada da palavra e do silêncio numa relação - tudo o que pela escuta mútua amplia o afecto. Diz Vittoria a certa altura a uma amiga: «Há dias em que mesa, tecido, livro ou homem são a mesma coisa» - i.e., a mesma falta de atenção e de diálogo. Por isso, quem interrompe o «minuto de silêncio» na Bolsa é a ansiedade do espectador, irmanado com o agiotismo de Piero. Ou não são os filmes, mesmo os de puro entretenimento, objectos de e para «proveito»?
de Federico Fellini
Cenário: a estrada fora. A princípio, Zampano/Anthony Quinn é o núncio da morte. Chega e informa a família de Rosa, a última mulher que tomou para si, da sua inopinada morte, pelo que tem de levar outra. Cabe a Gelsomina ser a próxima vendida ao hércules das feiras, Zampano. O estranho é a família, anestesiada pela miséria, não lhe perguntar como morreu a primogénita. Talvez porque a morte seja ali, naquelas choças implantadas numa fímbria de areia à beira-mar, uma presença tão quotidiana como a visão da água - um destino irrevogável, inclemente, que não pede meças ao tempo nem ao lugar. Se morreu, paciência, há que aceitar a nova dádiva de Zampano. Em acto contínuo se realiza a transacção, sendo Gelsomina promovida a «aprendiz» de artista. Assim começa este extraordinário «road movie» de Fellini, e o filme prossegue em traços grossos, sem meias tintas, da mesma forma que o vinho não se mistura com a água para manter activas as suas propriedades calóricas.
É improvável que Gelosima alguma vez tenha ido ao cinema, tal o grau de miséria. E contudo, interiorizou o mimo, a generosa gramática gestual de Charlot. É um Charlot sem safadezas nem cálculos, que só incorporou o lirismo, e por isso destituído de armas para a sobrevivência. Neste sentido, A Estrada, o filme que marca o início de uma trajectória brilhante, é um dos primeiros filmes pós-modernos (e é tão nitidamente consciente o artifício em Fellini que, para evocar o sortilégio do cinema, Zampano, nas suas actuações, anuncia que rebenta as correntes no peito «com a força do nervo óptico»), dado serem as suas personagens não extraídas da «realidade» mas escalonadas como um efeito da memória do cinema e uma homenagem a um dos génios do mudo - Charles Chaplin. Podemos até pôr a hipótese de A Estrada ser o último dos filmes mudos, o filme que seria improvável fazer trinta e muitos anos depois do mudo. Realiza-se neste filme um modelo de concisão, poesia e velocidade. Quem o vê várias vezes apercebe-se da forma veloz como Gelsomina é exposta às experiências, como se fosse um lanho batido por vagas alterosas. Em meia hora acolhe a notícia da morte da irmã, é vendida, torna-se artista de circo, é desflorada, conhece a traição e o sentimento de ser rejeitada, aprende a obedecer como um cão, conhece cinco ou seis povoações, planta tomates e parte sem os ver crescer...
Há uma velocidade estonteante neste filme só comparável à velocidade com que Orson Welles faz evoluir a narrativa em Citzien Kane, mas, o que é espantoso, sem fazer uso do corte, de uma montagem visível, dando até a impressão que o tempo está suspenso como a radiação dos corpos. Zampano e Gelsomina são dois monólitos, duas criaturas que nunca alteram o talhe da origem com que foram afeiçoados. Imunes à reflexão sobre a experiência. Andam ao deus-dará, tal qual foram postos no mundo, ele grunhindo sem abertura para o diálogo, ela com a fragilidade do palhaço a quem ninguém dá atenção. É espantoso o modo autista como ele dá as suas únicas referências biográficas. Ela pergunta: «Onde é que nasceste?», ele: «Na minha terra.»; ela insiste: «Sim, mas onde?», e ele, lapidar: «Em casa do meu pai». A vida secou-lhe passado e presente, só tem reflexo, sobretudo o que se refracta no olvido alcoólico. Pelo meio, há um funâmbulo, o Doido, que morre ao enfrentar em terra as fúrias de Zampano e a fuga deste, deixando a Gelsomina um capote, a corneta e algum dinheiro. Ela é que não deixa de cantar, da nascença ao canto do cisne. Um poema.
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