Vittorio Sereni (1913-1983) foi um excelente poeta e tradutor italiano. Fiz estas versões a partir da edição bilingue da obra Stella variabile/ Étoile variable:
Estes poemas já os havia publicado na Revista Magma, de Carlos Alberto Machado e Sara Santos.
TRABALHOS EM CURSO
1
Será que existem vidas como folhas mortas –
a casa entre as águas
evidentemente em ruína
nessa lepra que tudo carcome e só o aço rechaça
ou as teias de aranha, tangendo ainda os rumores domésticos da véspera
(e vazios os leitos húmidos desertos os divãs os panelões);
deixemo-la no clarão do seu enigma
na sua retracção pelo tráfego que flui incessante nas rotundas de Riverside Drive
não te inquiete saber como possam ter eles acabado
não digas que a vida é carbonização ou divórcio
(estranho que só isto fique duma metrópole inteira)
ou antes ninharias de uma viagem de inverno pela imensidão –
o pestanejar do repuxo no seu orgasmo de mutante
quando é ainda e já não é mais
um número de néon a emergir nos letreiros de Nova Iorque
ou ainda esses sinais, arabescos no vestíbulo dos formigueiros
farfalhosas epidemias sobre muros ladrilhos cartazes pintados
cruzes canhoto: que fazem estas suásticas aqui na Bronx,
ele havia-as tantas – dizem – disseminadas por pombos e falcões,
mas também as podemos supor velhos símbolos ou motivos indianos,
seja como for tão ambivalentes nesta meia sonolência:
pendões e estandartes pisados pela Europa
ou a desesperançada sombra do índio entre arranha-céus?
Outras estão a caminho, na agonia ou no êxtase,
novas e inquietantes sombras que adivinho sem as ver.
2
A alguns eu sei que não basta
querer-me morto. Assim me esperam:
morto, e com infâmia. Eles não sabem
que fiz pior e que há muito
os diminui na retentiva.
Já estes daqui são folhas
de ponto garatujas que trabalham em grande
não como os congelados em miniatura aqueles não-qualificados
bocas ínfimas que barafustam sob o vidro
- e teriam razão se simplesmente enxergassem –
desmentidos para sempre na corrente
fósseis no cimento vivo.
ADDIO LUGANO BELLA
Eu deveria mudar geografias e topografias.
Ela nas tintas para isso,
renega-me em efígie, recusa-se
à imagem - de mim (de nós) - que lhe estendo.
Mas que posso eu fazer se a estrada
se desenrola aos meus pés
como uma mulher (como ela?)
de um justo e vibrante descaramento.
E além do mais
sou feito de poços profundos o bastante
para aí caber também (n)isso.
E eis que de repente neva...
Eu, minha cara, não apelo ao candor da neve
à sua paz de floresta
definitiva
ao tépido conforto do arminho
a lenha lareiras e velas onde brilhem virtudes
de resto laceradas até ao absurdo
ainda que aqui desbotadas, por pouco que as vise,
como bandeiras murchas.
Estou por esta – devaneio nocturno – neve de março
profusão
de pétalas ou dilúvio de rebentos entre as montanhas
incertos lagos transitórios (como eu,
uivando de êxtase nas colinas em flores?
Falso-desabrochar, sim, uma hora
de sol há-de delir a geada),
que pelo seu turbilhão e tumulto
decompõem a noite e recompõem-na
em laminadas caudas de aço levemente prateadas.
À confiança os cavalheiros sonâmbulos
descem comigo a estrada
dum quadro
visto noutro tempo e perdido
de vista, reencontrado na memória de outros
ou simplesmente sonhado.
OUTRO POSTO DE TRABALHO
Não vais dizer-me que tu
és tu e que eu sou eu.
Somos passado na cascata dos anos.
De nós, aqui, não cabe mais do que o espécime
e seguramente um imago que se perpetua
no vazio –
as águas que nos espelham, as montras,
fazem-nos já no futuro: despenhados no depois,
glosas que o uso empalidece
múltiplas vagas de nós como um dia fomos.
Sem comentários:
Enviar um comentário