Não sei se a poesia pode fugir a isso, ou não pode. Momentos há em que convém ser menos silente e mais performativo. Vivemos um desses momentos e a poesia pode diagnosticar, dar a cara e forçar o riso, tocar na infâmia a ver se a polpa reanima. E se também as palavras estão ao preço da morte então não haja denodo em vivificá-las.
Falo-vos dum livrinho «Rendimento Mínimo», que não passa de um poema a responder a outro, ou a glosar um tema comum: a penúria dos vivos. A esta penúria leia-se não apenas em termos materiais mas também como deflação do simbólico, entregue à paródia pura.
Os maltrapilhos de serviço são o A. Da Silva O., pobre de pedir até no nome (porque não A. Da Silva Z.?), e o Rui Azevedo Ribeiro, que confia também de tal forma numa pobreza essencial que até se entrega à tipografia e à arte do chumbo - nas tintas se alquimicamente o chumbo é o ouro em potência, o que ele gosta é da “servidão” do chumbo, desse tête-a-tête com a matéria.
O livrinho, dois poemas, pouco deixa de pé.
Escreve A. Da Silva. O: «arrasto o meu cadáver/ pelas entradas/ das igrejas/ onde o diabo/ se agarra a mim/ de mão estendida». Esta disforia pícara é terrível: se até o diabo nos crava, incrédulo dos seus dotes, que fazer? Claro que nem tudo é mau: «o silêncio/ é sublime/ enquanto dor», posto ser a dor melhor que a poeira e só ela despertar a consciência. Mesmo que tardia. Mais difícil de aturar, «(…) o imposto revolucionário/ a fim de chegar/ a casa sem ser atropelado», o que nos relança na necessidade de outras “revoluções” menos apegadas à vil e triste história dos movimentos revolucionários do século XX, que nos conduziram a um beco. Que saída, como voltar a fazer? Talvez poema.
Rui Azevedo dramatiza o passo atordoado do indigente que faz «De todas as esperas, uma menos inútil/ Ó contentamento…/Pomadinha balsâmica/ nos meus arreganhos de homem». A espera mais proveitosa é a mensal, ao balcão da Caixa, para receber o «rendimento mínimo», aquele que permite «forrar o estômago de desforra». Belo achado que deixa o estômago cheio de nada. E sendo difícil esquecer o vexame, sempre «Passa o labéu e a mácula/ Que são penas mosqueadas», e o que interessa é que no fim «É um render mínimo, eu sei/Afecto ainda a uma reforma». Reforma, tão mínima, o que permite? «Rumino rimas inconsistentes».
O O’Neill gostaria. Eu gramo de vocês, pá! E por isso vos dedico o relato do que vi hoje, com estes olhos que a terra há-de comer:
LUTA DE CLASSES
O coice não se fez rogado
E acertou-lhe onde em gonzos
Um corpo se assobia, por dentro,
Como os pintassilgos carecas.
Foi com o salto o golpe e cobrava
Com juros um galanteio china
Desses que até em ostra põem liga
E dão unto à unha banhada em purpurina.
O coice saiu uma flor, desde Cruyff
Que não via penalty tão a rigor
Uma perda de ressonância tão aguda,
O tombo duma classe diria o Marx
face ao desatino da chaufagge central
na chupada, beiçuda face, do tesudo.
Quando as mulheres pegam as coisas pelos cornos o futuro volta a ter esperança. Ou não (, que me veio a Merkel à razão)?
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