francis bacon |
É sábado. Eis-me entediado como um bode.
Rechina uma ambulância. Duas. O céu
de um azul esmaltado sobre vidro ulcera
as pálpebras, como se feito de translúcidas
escamas de gala-gala. A beleza disto
só a adivinha quem viu e reconhece no lagarto
a glote de Deus. Ao fundo, a baía reparte-se em ínsuas,
penínsulas, em bandos de flamingos que voltejam
ao redor de carcomidas chaminés de tijoleira gris.
Sento-me na varanda, puxo de um cigarro,
de um maço que um amigo esqueceu,
acendo-o, entediado de morte, preso ao desejo
de que um arame farpado me solte um a um
nos pulmões os alvéolos da morte, que tétricas
imagens, recrimino-me, numa segunda passa
funda. Nada do efeito de Apolo III a levantar
voo num leve enjoo, como quando era miúdo
e fumar era a mais insurrecta polpa
inadiável. Passa uma terceira ambulância,
está um dia de massacres, a rua está cheia
de castanhos como diz a minha filha,
pela manhã, em sorvos de leite,
antes de ir para a escola, amor,
trazes-me um copo de vinho?
Um petroleiro rasga a baía
como uma fita vermelha. Chega de cores,
que saudades de Évora, reencarnasse Leonardo
no século XX e só pintaria panejamentos
brancos, uma por outra nódoa
de cereja nos tecidos. Não me apetece ler
e temo que o novo carregador por diferença
de amperes me lixe o computador antes do fim
do poema, talvez seja esta a vera morte ao sol,
sem sinos que dobrem por ti, por inércia,
tédio, uma morte por delicadeza,
por extrema delicadeza, como diria o Rimbaud,
compassiva e de perna aberta diante
do ecrã no retardado desejo de esterilizar,
de apagar o mais secreto gume da infância.
O teu avô funileiro havia de gostar desta desordem,
tantos à nora, quantos saberão ler, interrogas
olhando a mole do telescópico nono andar,
e, merda, faz um desurbano sentido a questão,
aqui, 30 séculos depois depois de Toth, o deus
egípcio ter inventado a escrita. É tramado.
Acendes um novo cigarro - trazes-me a garrafa?
Logo é o Benfica-Sporting, que ganhe o leão
e que o Pimentel faça hart-trick, só para
lhe voltarem alguns cabelos negros às cãs.
Que melancolia espúria, suspiro, saudoso
de comer os frutos de uma certa árvore,
de ser uma traça no cortinado da presença,
mortificado como a espessura da manga
que ouve a rasgadura do pedúnculo.
Aqui também foi sábado... não tão belo!
ResponderEliminarAbraço, António!
Abençoada melancolia que assim te arreda o tédio, às arrecuas.
ResponderEliminarPronto, já é domingo.
Tu és sportinguista, Cabrita?
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