foto de "eclipse" de antonioni |
Mas, para contrariar os azares, recebi hoje um testemunho que me deixou feliz: Fábio Lucas, um excelente ensaísta e veterano da crítica brasileira (uma das vozes que o leitor brasileiro ouve), que já o leu, elogiou ontem o meu livro publicamente, num Congresso de Escritores que decorre neste momento em Ribeirão Preto, onde também deveria ter estado e para a qual redigi uma comunicação, que foi lida.
Isto só tem importância para quem como eu não se importaria de mudar de armas e bagagens para a terra de nuestros hermanos. Talvez seja a cunha que necessitava para que a mesa não continue bamba.
Vamos foçar. Aqui deixo a capa e a abertura do livro:
1
Assusta-a a rudeza do mais velho, o seu rosto de ratazana esgalgada; o olhar indecifrável do outro, o gago. São os seus cunhados. Chegados há uma semana a Maputo para o enterro do seu marido.
Não param de manducar, de clamar por bebida, de vasculhar tudo na casa, metediços. A casa de banho ficou ocupada vitaliciamente (descobriu que o mais novo penteia o bigode com a sua escova de dentes), nos intervalos de emporcalharem lençóis, as toalhas de mesa, os sofás, de ranho e merda e vinho e esperma. Mal acorda, ainda enevoada, vê-os a adejar pela casa, sem decoro, os maxilares infatigáveis com que retalham o dia, enquanto plangem guitarras nas marrabentas («k’há n’pfa ndy nga psi tive/Eh psaku ku unandi ka Mandjólò») e o movimento dos lábios súplica por reforço: ma-ma-mã, tou-tou a pe-pe-dîr...
A sua mãe, farta daqueles modos, resolvera voltar a casa e levar as crianças, advertindo-a na porta, esta gente não presta, se armarem confusão fala com o polícia do sétimo. E fora, as crianças de olhos pisados pelo choro. O polícia do sétimo… - sentira um arrepio, e veio-lhe - o homem que prendeu o meu marido.
- Ma-mamã… - Pede de viés o menos abrutalhado – me me dá vi-nho!
O outro, na varanda, fuma, desconcerta a paisagem. Assim que chegaram gabaram a vista, já ouvera dizer que a casa do mano ficava no alto, mas este alto, xii, é graúdo, explicou o Ratazana, expondo pela primeira vez as gengivas em sangue, que a arrepiavam. Depois apercebeu-se, o que os animava não era a vista mas os dois vasos de maconha que o marido pusera na varanda.
Só vira três vezes aqueles irmãos do marido. Quando fora apresentada à família dele, no casamento, e na segunda vez que subiram à Beira, nascida a mais nova, para mostrar a miúda. Sempre a incomodaram aquelas gengivas em sangue, o verdete daquele canino talhado a meio. Na Beira, o Ratazana, tinha duas mulheres e nove filhos, e vivia de biscates. O outro, professor primário, fora deixado pela mulher, depois de a ter surrado quase à morte, com oito meses de gravidez. Por ciúmes do pastor:
- Ele te-tem aque-la fala li-lisa e mulher go-gosta,…- Desculpou-se.
O marido, ao pé deles, era um príncipe, articulado, elegante, perfumado. O tio Alberto, empregado na farmácia da Polana, até comentara:
- Xi, aquele moço nem parece ndau, é um machope de ventre enganado… (1)
Conhecera-o numa festa da McCel que assinalava o arranque da reabilitação da Feira Popular de Maputo. Ele era o chefe dos seguranças. Adorava vê-lo a dar orientações pelo walkie-talkie. Excitava-a o ar decidido dele, o seu fluido dizer, sem espinha ou caroço. Só muito depois, já nascera o segundo filho, soube que o seu verdadeiro negócio era o tráfico. O esquema. Vário. Que importava, se a metera a estudar, se graças a ele tinha feito a 11ª classe, se era bom com a criança? Já se tinha matriculado na 12ª quando ele foi preso. Na ocasião nem aparecera, mas de certeza que o polícia do sétimo estava metido. Um mês depois o marido envolveu-se num motim na prisão e foi abatido. Há dez dias. Separada do seu homem há dez dias, por uma bala que lhe engarrafou a alma. Dez dias separam a memória fresca do marido daqueles lábios grossos de sangue coagulado que agora, de viés, pedem, insistentes:
- Ma-ma-mã, pe-pe-ço sardinha!
(1) Ndau (da Beira) e Machope (de Inhambane) são duas etnias de Maputo, sendo os primeiros considerados mais agressivos e os segundos mais dóceis e inteligentes
2
«Mandjólò/ Nd’ya ka Mandjólò/ Kè m´baku/ Nd’yà ka Mandjólò»
Raul trinca o kitkat, sentado na varanda, ao som da marrabenta, que desce do oitavo direito. Comprara-o de manhã para o Artur, o filho, que deu duas trincadelas e rejeitou a guloseima, num esgar, pai, sabe a sabão. Desfaz o quadrado na língua, ensaliva-o vagarosamente. Sim, está muito longe do sabor que guarda da infância. Que quebra de qualidade. Na generalidade, ouve dizer, o padrão de qualidade dos chocolates da África do Sul baixou muito. Não entende porquê.
O balanço da marrabenta fende o ar: «Kòdwa u suka Ximbanguini, muzay/ N’kwãkwãnana/ Y n’gwavela kwapa ndlela/ U um ndyndyndy wénè». Mpfumo? (2) A chinfrineira dura há uma semana, desde que chegaram os familiares do falecido. Raul imagina o que a viúva passa às mãos de tais cunhados, grunhos do mato, osgas meticulosas. A viúva é-lhe simpática, tal como o era o marido – muito diferente dos irmãos, vivaz, alegre, urbano. Pena ter-se metido em cavalgadas. Hum, a viúva julga que ele teve alguma coisa a ver com a detenção, sem ter metido aí prego ou estopa. Não investiga vizinhos, evita esses assados e achava graça ao finado. Mesmo depois de ter sabido que se metia em alhadas. Devem estar a chupar-lhe tudo, pensa, malditas tradições. Vamos lá a ver se não a violam, à conta do kutchinga (3).
Nessa semana já a encontrara por duas vezes na escada e ela, de carantonha, não lhe dirigira a palavra, convencida duma culpa que ele não tem. Depois dos alarves se irem embora hei-de falar com ela – promete Raul. A marrabenta volta ao refrão. Espera não ter de intervir. Contara-lhe o guarda que a mãe da jovem saíra lá de casa, com os netos. Escapatória inevitável. O martelar da música desde o primeiro dia, extravagando indiferente ao silêncio exigível a um luto, ao recolhimento da viúva, punha às escâncaras a intrusão. Mas o quinhão de infortúnio que a cada um é destinado viver é intransmissível, não lhe cabe imiscuir-se. Será, reflecte Raul.
(2) Marrabenta é um ritmo musical popular, muito cultivado na periferia urbana, e de que Mpfumo foi uma das figuras míticas
(3) Kutchinga: uma tradição ainda hoje vigente no campo e segundo a qual a viúva passa a ser mulher do irm
3
0 Ratazana sacudiu-a pelos braços, ordenando ameaçador:
- Vai buscar papéis do mano…
Ela tremeu mas resistiu:
- Os papéis são meus e dos filhos…
O Ratazana redobrou a força da tenaz:
- Cabra, vou-te brechar… - ameaça - não pense que não sei, você matou meu irmão. Fez feitiço…
- Feitiço? Feitiço com quê?
- Não se ponha com não sei, com quê quê quê… ‘cê sabe, qualquer merda…
- Ele morreu na cadeia…- Replica, trémula, fixada nas suas gengivas em sangue.
- Feitiço de ir para a cadeia. Tem curandeiro em Maputo, que sei… queria ficar com tudo, t‘arranco o coração ao dente, puta.
Sublinhou a imprecação com um tabefe. Ela levou a mão à face, incrédula. Quando a retirou levou a segunda bofetada. Um formigueiro alastrou pela face contundida.
Há dias que eles quase não dormiam, que emborcavam sofregamente a garrafeira de Tomás, o falecido. Este punha orgulho no vinho que armazenava na despensa e até fora a Nellsprit comprar um desumidificador para manter a bebida na temperatura ideal; o vinho que há uma semana se delapidava de forma labrega, brutal. E estando a terminar o saque vinícola, chegava o anúncio das verdadeiras intenções dos cunhados.
O Ratazana expeliu um bafo que a nauseou. Fez uma careta, ao resmoneio dele:
- Tem sorte de não querer tirar a minha sorte, como é direito… ou não sabe que viúva de irmão passa para cunhado?
- Chamo a polícia! – balbuciou, ela.
- Não tem problema. Polícia entende de tradição. Mas a dama não pense que lhe empresto meu tesa… é maningue magricela para meu gosto, nem sei que tinha Tomás para comer… Quero é dinheiro do mano. Curandeiro disse que tem muito dinheiro em casa de mano…
- As contas dele, a polícia congelou… O que tem, está no quarto…
- E esta casa?
- É das criança! Tomás pôs a casa no nome dos filhos!
- Parte… - Grunhiu o Ratazana, na direcção do gago. O outro levantou uma cadeira da sala acima da cabeça e estilhaçou-a no chão. Desencaixou-lhe um pé e sorriu satisfeito, tinha o seu maço. Depois malhou no tampo de vidro da mesa de jantar. O vidro cedeu, desenhando o delta do Nilo. Atirou-se aos dois posters envidraçados que decoravam as paredes. Quando o maço acertou no candeeiro de pé chinês da sala e rasgou pelo ventre o dragão estampado do abajur a jovem viúva sentiu-se uma alma insepulta. Seguiu-se a cristaleira, reduzida a cacos, com impiedade.
Nas escadas, encostadas às ombreiras, as vizinhas sussurravam.
O Ratazana atirou-a para o sofá; caiu desamparada. Recostou-se ao fundo do sofá, cobrindo os olhos com a mão; impotente. Depois, ele puxou o escarro chegou-se à amurada da varanda e lançou-o sobre as acácias amarelas. Segue atento a parábola do muco voador, há dias que tenta acertar nas flores, embora a altura não lhe permitisse divisar o trajecto até ao alvo nem o seu impacto. Olhou em torno, provocador, e num impulso brusco pega num dos vasos de maconha e atira-o violentamente contra a janela larga da sala. Seguiu-se ao estilhaçar do vidro o baque seco do impacto do vaso no chão. O vaso quebrou-se pela base e um brilho de plástico preto assomou sob os cacos, na confusão da areia. O Gago correu para examinar o achado. Era um maço de notas de cem dólares embrulhado em plástico preto. De imediato, o Ratazana lho arranca da mão, e intima o gago a amarrá-la ao braço do cadeirão para que ela não fugisse, enquanto ele conta o dinheiro. A mulher chora.
As notas novas, fúlgidas, dispõem-se aos montinhos na mesinha baixa da sala. Vinte mil dólares. Os dedos compridos dos pés do Ratazana harpejam o ar, encantados com a colheita. Palita os dentes e conta pela enésima vez os montinhos. Leva a garrafa de vinho à boca e emborca. Vinte mil dólares. Aponta para ela, amarrada ao cadeirão:
- Não sabia?
Ela repete, a voz num soluço:
- Não!
O Ratazana volta à carga:
- Cabra mentirosa, vou-te golar, você queria roubar de nosso mano!
O Gago chega do quarto, trás um documento na mão:
- Ma-ma-no… - Estende-lhe o papel.
- Quê, quê, quê…? – Pega no documento e examina-o – É certidão de óbito… de Tomé.
- Vê, é pa-pa-pel fi-fino…- Embrulha-o um sorriso alvar - Tem “banana”...
- Vai buscar.
O Ratazana saca do bolso um canivete suíço, dobra a certidão e rasga-a em tiras, cinco. O Gago vasculha na despensa atrás das cruzetas do vinho, volta, e dá “a banana” ao irmão, que a abre e em gestos sacudidos, firmes, distribui a marijuana numa linha longitudinal sobre uma das tiras. A língua como uma gazua emudece uma das pontas, enrola o charro. Acende-o. A expressão aviva-se-lhe, tosse, dá uma nova passa, fundo, retendo a respiração; passa o charro ao irmão.
Tocam à porta.
O mais velho impõe silêncio e amarfanha as tiras da certidão de óbito e o resto da “banana” na boca dela, dando-lhe um tabefe, de sobreaviso. Retine de novo a campainha, insistente. A ratazana entra na cozinha, e por gestos indica ao irmão que abra a porta, daí a cinco segundos.
- Polícia, abra ou arrombamos a porta… - ouve-se, da escada.
O Gago abre a porta. Apontam-lhe um crachá à cara, enquanto o cano de uma arma lhe sonda a barriga. Recua. Sem uma palavra penetram na sala. Raul vê-a amarrada ao cadeirão, a boca a cuspir papel e erva.
- O teu irmão? - Inquire Raul – perfurando com a arma as tripas do Gago.
É nessa altura que uma lâmina lhe penetra nas costas.
Os dois irmãos olham o corpo inanimado de Raul, a mancha de sangue a alastrar na camisa. Impávidos, como a pedra desferida da funda.
Interrompe o Ratazana:
- Vai buscar “bananas” e lhes mete num saco. Vamos…
O Gago obedece. O Ratazana olha com desprezo a mulher, o seu pânico, que ensaia um grito. Ele não lhe dá tempo, com uma coronhada deixa-a desfalecida. Depois limpa a faca com a fralda da camisa e mete-lha na mão, que cerra sobre o cabo.
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