LEDA, DE BOUCHER |
Um dia abri o Notícias, de Maputo, e fiquei chocado com uma reportagem que dava conta que por causa do H5N1, a gripe das aves, os cisnes dos lagos e jardins europeus apareciam mortos ou estavam a a ser “evacuados”. A coisa chocou-me porque o cisne, viva epifania da luz no caso de ser branco, ou signo lunar no de ser preto, é um dos símbolos mais presentes na cultura e na história da representação europeia. Além disso, vejam a simpatia: a imagem do cisne é segundo Bachelard, «hermafrodita. É feminino na contemplação das águas, e é masculino na acção. Para o inconsciente, a acção é um acto; para o inconsciente só existe um acto... pelo que o cisne sintetiza o Desejo, que apela para que se se confundam as duas polaridades do mundo manifestado pelas suas luminárias».
Na Europa, de miúdos que, nos mais recônditos jardins de qualquer vilarejo, nos habituamos à sua beleza e nos atrai o seu fascínio. Trata-se de uma relação milenária, que o H5N1 parece ameaçar. Abri o caderno e logo após a leitura do jornal verti o seguinte poema:
A eufonia dos cisnes infiltrados de H5N1
invadiu os Museus de Arte da Europa.
Ledos, os guardas, e as canoras lídimas
guias turísticas, repetem, “eis-nos no debrum
do Casal Ventoso”. Pelo ar, lamenta-se Barroso,
num francês de estufa, todas as fronteiras,
inclusive as mais abruptas, são porosas.
Quem amnistia a brutal epizootia (frioleiras
de uma tia que arrasta à Casa dos Répteis,
Horácio, o epiléptico?) que lança no Averno
os lagos da Suiça, as margens de salgueiros
onde a súcia gozava estiagem, o pistácio
e o matutino e ficavam surdos aos ralhos maternos
(e quase alados) os dedos dos petizes? Quem,
no desatino de uma paixão suicida (Werther
faz duzentos e trinta anos), sacudirá a fogueira
da Europa? Poupem-se ao menos as perdizes!
Os apoios externos estão garantidos, anuncia-se
em Maputo – tudo a postos contra os lampos
frangos da Nigéria. Entretanto, grampo oportuno,
delicia-se o vírus nas bibliotecas da Grécia, bica
a polpa exangue dos sonetos de Yeats e Mallarmé.
Rien de rien, meu amor (hás-de ver se algum bicho
me picou a nuca), as nossas crias sorvem o seu capilé.
Coisas da Europa caduca - do seu espírito erudito
que, canzoada arrepiada, é pasto de mosquito -
(a fufa da tia - que raio designará uma epizootia?-
é que‘inda empurra o Horácio da balaustrada).
Comente-se agora o poema, passo a passo.
Comecemos pela palavra «eufonia», que significa, «som, agradável ao ouvido». Apesar do relativo mutismo dos exemplares que admiramos nos parques, não há criança europeia que não saiba que o cisne morre cantando e canta morrendo, o que o torna na realidade o símbolo do primeiro desejo, que é o desejo sexual. Daí a escolha de “eufonia”, que condicionará o resto do poema, pois obrigá-lo-á ora a rimas soantes ora a aliterações (repetição do fonema(s) no início, meio ou fim de vocábulos próximos, ou mesmo distantes, em um em mais versos ou frases). Se queremos celebrar uma ave de canto tão mágico, o poema deve cantar.
«os Museus de Arte da Europa»: o cisne é um dos animais mais representados no bestiário da pintura Europeia.
«Ledos, os guardas...». O adjectivo “ledo” quer dizer: risonho, contente, alegre, jubiloso. O que significa que as pessoas estão contentes nos seus trabalhos, porque se sentem bem remuneradas e colocadas em lugar de prestígio (os museus) onde podem aprender. Mas o adjectivo foi escolhido pela homofonia em relação a Leda, uma rapariga grega cuja beleza provocou tais convulsões em Zeus, o “rei” dos deuses gregos, que este se metamorfoseou em cisne para a possuir e fecundar, episódio que está presente em centenas de quadros da arte Europeia e em inúmeros poemas, dos quais os mais famosos serão os de Mallarmé e de Yeats (Prémio Nobel), que transcrevemos: LEDA E O CISNE, «Um vento abrupto: as asas batem sobre/ a moça atónita e o quadril sujeito/ às membranas escuras – ele a encobre,/ bico na nuca e peito a inerme peito.// Como, assustada, opor um gesto incerto/ se a glória alada lhe abre a carne aflita./ Que fazer – sob o arrojo branco – excepto/ sentir que o estranho coração palpita?/ Um tremor nos seus rins gera a fogueira/ da torre ao tecto, os muros vacilantes/ e o fim de Agamenon. Rendido a esse// selvagem sangue do ar – ela absorvera/ o seu saber com os seus poderes antes/ de o bico a abandonar sem interesse».
No mesmo verso, o adjectivo “ledo”, por contiguidade, “metamorfoseou-se” em “lídimo” (legítimo, autêntico), pois as guias-turísticas são quem autenticam as “histórias do lugar”, nas visitas turísticas. Por outro lado ao associar “canoras e lídimas” associo, por extensão, a beleza dos cisnes à das guias turísticas, que geralmente são belas ragazzas.
“eis-nos no debrum/ do Casal Ventoso”. Debrum: fita que se cose dobrada sobre a orla de um tecido, para guarnecê-lo ou segurar-lhe a trama. Introduzi o vocábulo “debrum”, como rima do 1 de H5N1, mas também como ideia de limite, pois o Casal Ventoso era um bairro de Lisboa de grande degradação, promiscuidade e de vida formatada pelo deus dará da droga e dos seus gangs. O Casal Ventoso é pois o inverso da ordem dos Museus, e de uma imagem-de-si que valide uma identificação simbólica, daí o debrum como remate, delimite, pondo termo ao caos que lá se verifica.
Barroso: identifico o Presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, e uso a frase dele que a notícia cita para falar da impotência da Europa face à calamidade que se abateu sobre os cisnes: «por ar todas as fronteiras são porosas», o que além do mais me permite a aliteração: oso e osa(s).
No oitavo verso utilizo uma palavra que aparecia na notícia e da qual desconhecia o significado: “epizootia”. Como a desconhecia de todo, uso uma liberdade poética e concedo-lhe um significado meio absurdo: “frioleiras de uma tia – a fufa!-/ que arrasta à Casa dos Répteis, Horácio, o epiléptico?”, que por um lado introduz uma segunda trama no poema e por outro é uma crítica à imprensa sensacionalista que invadiu o quotidiano de uma Europa impotente face aos verdadeiros problemas mas assoberbada por falsos problemas como os psicodramas individuais que invadem os media. E fatalmente dada ao gozo do exotismo que herdou do colonialismo, o que é reforçado pelo fruir do pistácio, que não está lá só para rimar com Horácio.
«... que lança no Averno/ os lagos da Suiça»: Averno era um dos nomes que se dava ao Inferno na antiga Grécia, e a Suiça é o simbolo da estabilidade burguesa europeia.
Werther (1774), de Goethe, foi o primeiro romance burgês original, que cria o tipo de intelectual burguês jovem desadaptado à sociedade e que entra em conflito por causa da apreciação elevada de si próprio e do desajuste a que o sistema social o obriga, acabando por suicidar-se. O suicídio da personagem Werther causaria o suicídio de centenas de jovens (leitores) pela Europa fora e foi, na Europa das Luzes, uma das provas da importância do romance como validação simbólica dos povos e dos indivíduos.
Ou seja: um poema circunstancial, que parte de uma simples notícia, pode ser o pretexto para falar (parodicamente) da perda de aura de uma certa ideia de Europa, estanque, inexpugnável como força civilizacional, o que leva ao comentário irónico (e pessoal, por questões de gosto): «Poupem-se ao menos as perdizes!», alto pitéu gastronómico, apreciado em toda a Europa, vocábulo que mais uma vez não está ali só para rimar com petizes (as tais figuras aladas, inconscientes, que gostam de meter o dedos no bico dos cisnes).
O poema prossegue no sentido da notícia e só vale a pena referir agora a escolha de «lampo» para qualificar os frangos da Nigéria. Lampo, parente fonético de frango, significa “o que vem fora do tempo, temporão”. É uma crítica ao “deixa-andar” e à permeabilidade com que, em África, a perspectiva de um bom negócio para alguns pode fechar os olhos à calamidade pública que a sua execução acarreta.
«nas bibliotecas da Grécia...»: a mitologia grega legou-nos a lenda de Leda e do Cisne (Zeus) e daí que seja natural que seja nas bibliotecas da Grécia que os cisnes enlouquecidos começaram por esfacelar os poemas de Yeats e Mallarmé.
A quadra final (depois do descanso privado do capilé, pois o mundo não pode ser só desesperança) reforça a denúncia do estado de absurdo a que as vicissitudes da vida contemporânea nos impelem.
Vemos assim como um poema que partiu de uma notícia de circunstância não prescinde, na sua construção, de um cabedal de referências que fazem parte tanto do sistema cultural em que cresci como de um estranho jogo entre a necessidade (a trança de referências, de intertextualidade, que o vai moldando) e a liberdade (o meu naipe de escolhas face ao estímulos que o poema vai colocando).
É claro que, neste caso, estamos diante de um poema que assume uma postura “culturalista”, embora a cultura de que o poema está encharcado esteja imbuída em mim e não tenha sido concebido num moroso acto de “engenharia verbal”, dado que este poema foi escrito de impulso, e retocado em dois momentos posteriores: ao primeiro rascunho, no café, à mão, seguiu-se a sua correcção automática quando o transcrevi no computador e uma nova rasura para esta função.
É poema de valia? Até agora duvido que o poema respire. Nem isso importa. Provavelmente nem (numa quarta versão) o incluirei em livro, pois guardo o bom hábito de só publicar um terço do que escrevo, o resto são ensaios, exercícios para ginasticar a imaginação – e é assim que deve ser. Ramon Gómez de La Serna escreveu uma vez um longuíssimo texto sobre pregos que, lido, é um fabuloso exercício mas que nunca coligiu na sua obra completa, porque senão todas as cópulas dariam filhos o que seria um tremendo disparate.
O que interessa reter é que a poesia participa de uma festa da inteligência de que a cultura são os acepipes e sem esta só existe o orgulho a falar pelos buracos da inteligência e um nada tremendo ao fundo do estômago.
Tudo, até o amor exige muita incubação prévia, como o diz superlativamente o poema da salvadorenha Cristina Peri Rossi,
HISTÓRIA DE UM AMOR:
«Para que eu pudesse amar-te
os espanhóis tiveram de conquistar a América
e os meus avós
de fugir de Génova num cargueiro apodrecido.
Para que eu pudesse amar-te
Marx teve de escrever O Capital
e Neruda a Ode a Leninegrado.
Para que pudesse amar-te
em Espanha houve uma guerra civil
e Lorca morreu assassinado
depois de ter visitado Nova Iorque.
Para que eu pudesse amar-te
teve Virginia Wolf de escrever Orlando
e Charles Darwin
de viajar ao Rio da Prata.
Para que eu pudesse amar-te
enamorou-se Catulo de Lésbia
e Romeu de Julieta
Ingrid Bergman filmou Stromboli
e Pasolini os Cem Dias de Saló.
Para que eu pudesse amar-te,
Luís Llach teve de cantar Els Segadors
e Milva os poemas de Brecht.
Para que eu pudesse amar-te
alguém teve de plantar uma cerejeira
na cerca de tua casa
e Garibaldi de lutar em Montevideo.
Para que eu pudesse amar-te
as crisálidas fizeram-se mariposas
e os generais tomaram o poder.
Para que eu pudesse amar-te
tive de zarpar num navio da cidade onde nasci
e tu de resistir a Franco.
Para que nos amássemos, por fim,
ocorreram todas as coisas deste mundo
e desde que nos amamos
persiste uma grande desordem. »
E afinal, o que significa Epizootia? Eis, meus caros, um belíssimo TPC. E que a curiosidade e o afã de aprender nunca abandonem as vossas vidas.
Que excelente despertar. O café dir-se-ia capilé!
ResponderEliminarQuanto ao TPC acho que cabularei. Aguardo, manhoso e gazeteiro, o gentil esclarecimento!
Toma lá este samba!