quarta-feira, 16 de novembro de 2011

MASSALA, MAQUARTO, COZINHA


O tíbio bigode do Cantinflas era um dos meus pesadelos. Temia que o selenita chegado com a Apolo XXIV olhasse para tamanha leveza e desatasse a escarnecer do drama dos humanos, da espandilose da minha avó e das 3 cruzes (o diagnóstico é do meu avô) no fígado do meu pai, que o fazia vomitar sangue sempre que apanhava uma torcida. Todo esse sofrimento me parecia deploravelmente posto em dúvida naquele bigode que fugia de si mesmo como o diabo da cruz e que entrevi, em miúdo, numa matiné do Cinema S. Miguel.
Os outros miúdos riam ao meu lado; a mim que sonhava ser em 2015 (ainda é possível) um homem na lua e devorava a mais pequena notícia sobre a conquista no espaço, penalizava-me a falta de adubo no buço do cómico mexicano.
Eu era sério. Era o menino mais sério de Mafalala e arredores. Sempre enfiado nos livros do meu vizinho Craveirinha, que me dava carolos de três em pipa quando eu levava mais de três semanas a devolver-lhe um livro. E era ele que me instigava, vai passar um filme dos irmãos Marx, olha, amanhã põe-te pipi, que te vai ser apresentada a Ava Gardner, depois chegas a casa e não podes mexer mais de mil vezes no castigado, senão crescem-te caroços no mamilo, ouviste; apressa-te, hoje vai passar o Cantinflas, o teu xará, corre… Eu adorava fazer o que ele me dizia, só que não ria. Sempre tive dificuldades em rir. És o preto mais sisudo que já vi, igual a ti só a black-&-decker do Buster Keaton, casquinava o Zé, e ria. Eu nada.
Um dia os meus colegas de serviço arranjaram-me uma saída com “a lady mais engraçada do mundo”. Ela torrava energia como os ricos despendem dinheiro, e era animada de facto. Mas eu não me ri de nenhuma das quarenta anedotas que me contou nesse dia. Por dentro, uma ou outra fez-me cócegas, mas o meu rosto não desfez o nó.
Acabámos na cama, dizia que a excitava o meu mistério, e às quatro da manhã chorava, agarrada ao meu peito. Eu tinha o nome do comediante mas provavelmente faltava-me o sombrero
O que me apavorava no bigode do Cantinflas, na sua inexplicável ligeireza, era a probabilidade do mesmo me acontecer. Não me despontou tamanha rarefacção, mas a ideia da lotaria sobrepôs-se ao facto de casualmente não me ter acontecido. A hipótese, impunha-se-me como regra.
E posto que eu imitava o meu vizinho, que titilava um português sem espinhas com a facilidade com que a mosca dá piruetas em torno do vazio em que vive, rapidamente me apercebi que à minha volta se falava o português do Cantinflas, que o bigode deste estava para o moustache como o português engessado dos meus amigos se deslocalizava em relação à pedalada da Lourdes Mutola.
Foi o drama da minha vida. Falava demasiado bem a língua do outro. E escrevia igual, sem descoroçoamento ou sobressaltos de gramática, ao contrário dos chefes que me impunham e odiavam o luzimento das minhas frases. E eles, tão fiéis a memorandos e palavras de ordem que não entendiam, exigiam: define-te! E eu que aprendera com o meu vizinho que quanto mais se ama a língua mais ela se torna líquida, explicava, quando se tem emoções de fundo as definições são os lírios da margem. Porque eu nunca me ri, mas tenho humor. Eles não. Era politicamente incorrecto não me rir com as graçolas dos grunhos. Define-te!  E eu não ria. Jodime, como diria o Cantinflas. Acabei como florista na rua.
Por isso não me espantou a reportagem: os meus amigos riram como alarves. Eu lia-a compungidamente, vendo-me ao espelho. Na edição do Escorpião de segunda-feira, 21 de Junho de 2010. Verdadeira verdadinha, como morrer ao sol. O título anunciava: CIDADÃO FURA MURO DA CADEIA PARA VIVER COMO RECLUSO. E então lia-se no lied: «Um cidadão de 28 anos de idade que responde pelo nome de Macamelo António, que outrora esteve preso e condenado a pena de 10 anos de prisão por prática do crime de homicídio voluntário, evadiu (o jornalista queria dizer: invadiu) recentemente o muro da penitenciária agrícola de Chimoio (Cabeça de Velho), para poder viver naquele estabelecimento prisional como recluso. Esta informação foi obtida à margem da visita do director nacional do IPAJ aquela penitenciária (acentos não é com eles).» E continuava: «Segundo explicou à nossa reportagem, a sua primeira prisão aconteceu quando tirou vida a seu padrasto e em consequência foi condenado a 10 anos de prisão maior, dos quais cumpriu 5 e beneficiou-se de liberdade condicional, depois do cumprimento da metade da pena.
Já em liberdade Macamelo António, não suportou as dificuldades que a vida o impunha para se inserir na sociedade e, segundo explicou, foi alvo de fortes perseguições movidas pela família do malogrado.
Disse que a única alternativa que encontrou para se escapar das perseguições e do tipo de vida que levava, bem como para evitar a prática de crimes como por exemplo roubar para a sobrevivência, foi, volvidos 42 dias em liberdade, regressar a cadeia e com recurso a um instrumento, na calada da noite, abrir um edifício no muro e dali introduzir-se no recinto da cadeia, tendo sido encontrado na manhã seguinte.
O apaixonado pela cadeia, diz ser pai de um filho menor e o mesmo vive em companhia da sua ex-esposa com quem está separado. “No dia em que fui condenado a 10 anos de cadeia, chamei a minha esposa e orientei-a a sair de casa e procurar outro homem para não sofrer por minha causa durante dez anos que iria cumprir na cadeia e isso aconteceu ela está com um outro homem”. Afirmou:
Macamelo, não está arrependido em ter voltado a cadeia onde foi novamente julgado e condenado a outra pena de 1 ano por ter se ter introduzido em domicílio alheio e pelos danos materiais causados à Cadeia. Segundo apurámos junto do director daquele estabelecimento prisional Ivo Garrido, aquele recluso por ter cometido este crime antes de completar os cinco anos que havia se beneficiado da liberdade condicional, terá de cumprir o ano a que foi condenado agora, e consequentemente cumprirá os outros cinco que havia se beneficiado da liberdade condicional.
O director da cadeia Ivo Garrido disse que, “o retorno deste recluso à cadeia significa eu algo de positivo durante o período de reclusão se beneficiou. Sendo assim, só há saudades por onde a pessoa tenha passado e encontrado um tratamento digno e humano. Este é um caso inédito o primeiro a acontecer e chama atenção não só a nós como funcionários mas também a outros reclusos”, disse, e acrescentou: “Nós o perguntamos o porquê desta atitude e respondeu que sentia se bem tratado e que está melhor na cadeia do que fora. Ele tem um tratamento igual com os outros reclusos, mas a sua atitude pode nos levar a perceber que, o processo de preparação do recluso no contexto humano e educacional estamos com alguns passos significativos que se comprovam a partir deste comportamento”. Assim entende o director.
Enquanto um regressa de forma voluntária e em jeito de amor para com a cadeia, outros reclusos da mesma penitenciária que lutam contra o tempo de sofrimento que lhes foi imposto pela lei devido a pratica de diferentes crimes, estão a aprender fabricar pão e biscoitos feitos a partir da mandioca assim como, açúcar amarelo através da cana sacarina que abunda em diversos pontos daquela província (…)».
Não quis ler mais, quanto aos pontapés gramaticais já dou de barato, arrepiava-me era ser invadido pela tentação de também eu assaltar a penitenciária, na mira de lá dentro aprender finalmente a bordar em ponto cruz.
E, pela voz do director, traçava-se um projecto social onde se agoira uma utopia indeclinável. Para quê calcorrear a cidade tentando vender tábuas de engomar, ou cactos, sulcar sete quilómetros numa direcção antes de tornar de rabo entre as pernas na direcção oposta à cata de bóer para vender as motos de arame? Ser honesto dá centenas de quilómetros consumidos no circuito para a fome. Gamar uma black-decker no Game  (meu deus, como perdemos mundo: da black & decker do Buster Keaton para a do Game!) e depois tentar furar as paredes da penitenciária do director Ivo Garrido multiplica de imediato as vantagens e com uma esplendorosa duração: sossego, dormir a sono alto, papa a hora certa e roupa lavada. Mais perfeito é difícil. Por que afinal, a liberdade, como sabe Macamelo, não é um caramelo fácil a que baste abrir a boca. Em sabendo que nos tratam com devoção e educacionalmente que mais se pode desejar?
O vocabulário usado pelo jornalista mostra que também ele sentiu na pele o mesmo que nós – eu e o presidiário. O apaixonado pela cadeia: alude ao conforto do preso numa casa onde já ninguém o agride e a que afeiçoou as rotinas. Tenho a certeza de que o jornalista não escolheu as palavras em vão, não quero chegar ao extremo de dizer que é homossexual (talvez tenha sido apenas impreciso ao confundir segurança e afecto) mas é tão hiperbólico que ou já esteve preso ou em pura empatia deixou escapar que também ele se sentiria mais amado lá dentro. Podia até ser pela chefe da cozinha, mas algo o puxa para lá.
A situação fala por si – e por nós também. Também eu, em jeito de amor, mesmo depois de me ter calhado um bigode de boa safra e volume, me decidi a cultivar a língua, no interior das suas paredes telescópicas. Estou preso nela e a esta prisão voltaria irremediavelmente depois de me haverem libertado.
Foi esta a língua que me foi dada e que os meus pais, como assimilados, me inculcaram e não consigo voltar-me contra o que me diz. Não se dança o tango com pés alheios. É prisioneira dela que me movo. O meu espírito senta-se como o autista na sua cadeirinha de plástico e goza em movimentos oscilatórios um obsessivo percutir das sílabas: fo-da-se!
Às vezes ofendem-me e acusam-me de ser o preto que, numa esquina da Kenneth Kaunda, só vende flores brancas. Querem dizer aos brancos, mas que sabem eles de proposições e pronomes, e raramente acertam o género nos verbos. Claro que é mentira, ainda ontem vendi estrelícias ao Presidente. E vendi-as como estrelícias, pois que culpa tenho de não haver nome para elas em ronga ou mashangana. Aliás, ele pediu-mas como estrelícias. No fim perguntou-me, o negócio vai bem? E eu, com esta minha fronha que nunca ri,  lembrando-me de um dito do Zé, respondi, vai senhor Presidente, até já mandei fazer uma casa nova com massala, maquarto e cozinha. E ele riu.
Eu não, eu nunca me rio, e espero ainda caber como astronauta na Apolo XXIV. 

*Massala e um fruto, de casca rijíssima, como uma toranja que tivesse sonhado ser uma bola de bilhar. E o ma, antes das palavras, nas liguas bantu, equivale ao artigo. Ma = a. Massala= a sala, maquarto = o quarto
** o Game 'e um hipermercado em Maputo 

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