quinta-feira, 29 de setembro de 2011

FORS SUA CUIQUE LOCO EST *

uma foto minha, no lançamento de um livro de umas fábulas macondes que eu recriei para que o meu pai, no altíssimo, veja que apesar de tudo lhe herdei o olhar, que nunca foi supramente idiota

Aconteceu-me um encontro terrível mas simultaneamente exultante. Num restaurante da Baixa de Maputo. Levanto-me para ir aos lavabos e vejo o meu pai, que não via desde os 26 anos. Alguém absolutamente igual, mas em basalto negro. Era do Zimbabué e não nos entendemos porque não falávamos nenhuma língua comum, mas saí da tasca alterado e a pensar na possibilidade de que todos nós podemos ter uma variação noutra raça ou latitude. Parece-me sedutor, e além disso sempre resolvia de forma feliz o destino do meu pai, cuja tragédia contei num dos dois únicos contos (em dezasseis) que tem um fundo de vivido no meu livro “Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo” (Teorema, 2008). Em nome da emoção que vivi hoje, aqui vos deixo:


Aos 46 anos o meu pai deixou de rir. Sulcava sorumbático o corredor da casa, para baixo e para cima: cismava em desentranhar a luz das tripas de um sapo.
Eu acabara de ultrapassar em corrida «a mais bela idade da vida» e martelava nas teclas duma velha Hermes, despachando verbetes para uma enciclopédia popular. Fora o que arranjara depois do curso de cinema e de interiorizar que não tinha estômago para rodagens com mais prepotência e bebedeira que arte, onde as equipas se comportavam alegremente como receptores de material roubado. E à bebedeira tinha-a na estima duma flor dos naufrágios. Na Escola, um dos professores confessara que para fazer cinema «basta ter lata», eu é que não tinha o canivete afiado para o descasque do cigano.
Martelava nas teclas. Estava convertido num especialista em rios, rios de todo os quadrantes, que invariavelmente fazia chegar «já exaustos» à foz, e a um deles – o que me valeu reprimenda da supervisora – fi-lo «soçobrar ao cansaço, atirando-se descompassadamente da foz para o mar num suicídio pleno de fragor.» Entregava os verbetes à sexta-feira de manhã para poder receber um cheque semanal, o que traduzido na minha proverbial indisciplina resultava em 40 horas sem dormir, atado à máquina, numa caudalosa inconsciência, enquanto espreitava aqui e ali as fotocópias de outras enciclopédias e trocava os leitos e a fauna aos rios, pondo o Danúbio a atravessar o Kentucky.
Nesse mês, Outubro, para variar, pedi material que se relacionasse com o «ó»: ósculo, obituário, oração, Orlando... e nessa manhã duma sexta desunhava-me com a fúria de um depenador de avestruzes. Tinha combinado com a namorada uma surtida ao Norte, à boleia, e precisava desesperadamente de dinheiro. As coisas fluíam no ritmo devido e eu procurava decalcar nas teclas a cadência eruptiva de Stravinsky ou da Mahavishnu Orchestra. E às dez da manhã o meu pai irrompeu pelo meu quarto:
Pára...pára...pára de bater à máquina.
Quê, está doido?
Tinha um olhar de pânico:
Pára, as teclas estão a falar de mim.
É, e a mim cantam-me ao ouvido porque já ouço as lecas...
Peço-te para parares, elas estão a falar de mim...
Ele agarrou na máquina para a lançar pela janela e eu fiz o pude para o suster, numa ira crescente. Ele estava magro, seco como o Gregor de Kafka na véspera de finar-se.  Empurrei-o para trás com quanta força tinha e ele embateu com a coluna num bico da mesa. Caiu fulminado por um raio. Sucederam-se cinco minutos de pânico, sem saber o que fazer com ele em tremuras no chão e uma expressão de dor que condensava várias toneladas de xisto.
Peguei-o ao colo e enfiei-o na cama, telefonei para um familiar, peguei no trabalho feito, numa mochila com roupa, e fugi. Ele esteve uma semana semi-paralisado.
Andámos dez dias pelo Minho, à boleia, e numa sebe deixei esquecido o meu casaco de cabedal, a única peça de roupa que alguma vez tive de valor.
Às vezes chorava enquanto fazíamos amor, com a cabeça escondida no pescoço dela, para que ela não visse. Á cabeça só me vinha o olhar implorativo dele e a frase: «as teclas estão a falar de mim!». Estava doido. E eu não me sentia melhor.

Desci do autocarro, fiz uma rápida panorâmica pela praceta e estaquei nele: um velho freak corroído dos ossos aos neurónios pelos ácidos mas que mantinha a agressividade no redil. Até esse dia, esse momento em que o meu olhar  a vinte metros dele estacou na sua figura e segregou na minha mente: “Que raio é que lhe aconteceu? Está  nojento, o cabelo parece uma pasta!”, à medida que avançava displicentemente na direcção da minha porta. Enfiava-me entre dois carros estacionados quando ele aferrou uma manápula de aço ao meu pescoço e me apontou uma pedra da calçada à cabeça, alvejando-me com uma clareza inexplicável: “Quem é que está nojento? Que cabelo é que parece uma pasta de merda, ó cabrão?”.
Divido-me em avaliar se o tempo se distendeu ou condensou – fixei-lhe os dentes esverdeados, raiados de nicotina, que se semelhavam a cascos de bode,  depois em ralenti foquei a pedra, o tamanho, a densidade, o relevo, procurando minimizar os estragos no meu rosto, contraído pela pressão na glote; pelo rabo do olho identifiquei cinco dos meus parceiros de infância impassivelmente recostados à montra da padaria, calcinados por milhares de panfletos consumidos (ou vingavam-se de eu continuar a estudar e eles não, de ter namorada e eles não, de ter dispensado a esquina onde coçavam as horas à espera duma cena; vingavam-se da clemência com que os cumprimentava?), enquanto o medo aflorava no meu rosto e, para além dele, o espanto em tiquetaque nas têmporas.
Repentinamente libertou-me, escavacou a pontapés o farolim de um carro estacionado e lançou a pedra para longe, antes de zarpar num passo hirto.
Refugiei-me no quarto. As mãos tremiam-me. A incredulidade reboava-me na cabeça: ele reproduzira exactamente o que eu tinha pensado.
Aquele tipo enfrentava um mundo em estado nascente, que nele confluía ou defluía por laços invisíveis. Ler as mentes supõe ouvir à capella as oratórias do inferno. Com que radar captava ele o que andava no ar, apesar do decoro do não-dito, e da opacidade do silêncio? É um dom que claramente não se deseja e que gemina com a paranóia.
Não passou um ano sem que me encontrasse inapelavelmente na mesma condição.
Três dias depois de ter feito dezanove anos, numa noite a desoras, um charro fumado em grupo projectou-me numa experiência abissal.
A minha consciência derruiu como um castelo de cartas e fui sorvido pelo vácuo. O meu pavor resistia debilmente àquele engolfamento no ralo.  Incapaz de conexão com o grupo, entrei em colapso: a vacuidade instilara-se no meu âmago e propagava-se do mesmo modo que o branco no branco acende o jarro.
Normalmente a consciência é o motorista de um carro que transporta o sentido de um lugar para outro. Naquele momento, nitidamente, viajava de táxi e o motorista não era eu – pior: o estrito valor residual do sentido coava uma espuma.
Absolutamente dissolvido, as palavras deles começaram a brotar directamente de mim. Num jorro que abolia o eu e o tu, o sujeito e o objecto, e me fazia participar de algo não formulado, oculto e nunca antes denunciado, um elástico ao abrigo da própria imagem. Despejado de identidade, sempre que tentava balbuciar algo as palavras rebentavam como bolhas antes de recortarem um sentido ou de chegarem à boca. Só as palavras deles refrigeravam o meu âmago esburacado. Estava reduzido a um vegetal com o pavor a florir, entre os ossos e uma velatura crivada de vozes.
Era uma época em que saltávamos de intoxicação em intoxicação, ávidos por tocar a chama. O álcool, as drogas, a desmesura desorbitavam a mágica geografia dos sentidos. Aquele estilhaçar de medos e simulacros fazia ressoar um aviso do inconsciente: estava preso nas malhas de um ritmo alheio e precisava de esvaziar para que o meu próprio eco começasse a fluir. Precisava ainda de engolir o dragão.
Aguentava-me como podia: num caco. Segue-se o marasmo à descoberta de que no âmago existe o nada. Lidar com a realidade equiparava-se agora a um trabalho de desminagem, que destroçaria os nervos de Hércules. Não percebemos mais do que aquilo que se filtra e eu andava sem filtro, permeável aos clamores da realidade e aos hieróglifos que a linguagem desatava, sem preparo para um estado de “doença” em que as palavras revivem a origem do seu sentido.
Com a ingente personalidade em esfoliação, manifestava-me em sombra chinesa, ofuscado por coloridos deslizes semânticos. A mais corriqueira das conversas sobre futebol, numa mesa de café, ao meu lado, descolava do seu plano factível e adquiria dois ou três níveis de significação, acabando por ser traduzida numa cifra que reflectia - o verdadeiro objecto da discussão - o meu deficiente estado de crisálida. Os comentários sobre um penalty falhado, por exemplo, na minha lógica “transmental” tornavam-se uma charada que focava a minha incapacidade para a prontidão do ser. Estava no centro do inferno, intérprete de um atávico desajuste das peças num puzzle. Às vezes, em períodos mais lúcidos, sentia-me o ponto dessa comédia cósmica que me aprisionava e me negava os liames.
Era portador de um segredo que não podia contar (temia sobretudo que a namorada me abandonasse se eu lhe contasse a verdade sobre as minhas alucinações verbais). Sofria por não saber ainda que, tal como na natureza, há um tipo de nada que fertiliza. Naquela altura andava em pontas sobre lâminas, em alerta constante, ainda que dissimulasse com relativo êxito diante da namorada, de amigos, da família. Para não pensar, não ouvir, não ser interpelado, fechava-me a ler e calhou ter encontrado num tratado indiano do século XII a recomendação para se voltar a dormir após um sonho mau, sem falar disso a quem quer que fosse, afim de destruir os efeitos nefastos. Foi o que fiz, e além de me entregar com afinco a Morfeu entreguei-me aos sonhos da literatura. Três livros salvaram-me da fossa: Aurélia, de Nerval, Trópico de Capricórnio, de Henry Miller, e Apresentação do Rosto, do Herberto Helder. A este lia-o literalmente, do mesmo modo que a Moisés a visão divina era concedida pela evidência e não por enigmas, sonhos e metáforas. Fora investido da percepção fulgurante e imediata que engendra e desmonta os andaimes da interpretação, sob o impacto duma revelação subitânea. Mas levei mais dez anos a perceber que o medo só desfaz os seus inextricáveis laços quando deixamos de o combater.
Estremeço, neste instante, ao dar-me conta de que o meu pai tinha razão: as teclas falam dele. A sua perturbada percepção tê-lo-ia feito vivenciar uma dobra no tempo, lendo no toc-toc dessa desconchavada Hermes que se derramava em rios e olas, o aveludado metralhar deste teclado ergonómico que o evoca?

Lembro-me: chegava de algures, como sempre, e dispunha-me a tomar um banho, trocar de roupa e pirar-me para alhures, entre os braços da amada e as lerpadas com os amigos. Andava pelos vinte e dois e a minha crise estava mitigada, ainda que a espaços se manifestasse em picos de ansiedade e pânico. Levara seis meses fechado no quarto, lendo, escrevendo, bebendo vinho rasca, e deixando o meu pai apreensivo por uma tão prolongada e desusada permanência em casa. Quando a realidade interior foi revolvida, ainda que se escondam os escombros, aparecem olheiras fundas na auto-estima. Por duas vezes, tentou abordar-me e eu descartei a hipótese de um diálogo, refugiando-me em monossílabos e desculpas de trabalhos por entregar. Ao fim de seis meses lá saí da toca e voltei à boémia – ainda que à cautela, sombreado por um halo de superstição. Ele pareceu aliviado, mas às vezes os seus olhos perscrutavam-me o espírito, inquiridores.
Abri a porta e fui golpeado de imediato pelas correntes de ar que provocavam uma dança de papéis no corredor. A casa distribuía-se em torno dum comprido corredor central, e as suas seis janelas escancaradas enchiam a casa de ventos, revoadas e assobios. Ele estava deitado no meio do corredor. Perguntei, ‘o que é que se passa, está doido?’, e a resposta foi descoroçoadora: ‘Estou a ouvir o que dizem de mim! Estou a ouvir os sinos da Basileia!’.
Estaria a sacrificar-se por minha causa, sabendo que com a sua descida aos infernos eu teria de reagir? Durante anos também eu ouvi os sinos da Basileia.

*“cada lugar tem o seu próprio destino”, Vergílio

1 comentário:

  1. António, reparo que a tua testa está cada vez maior. Pergunto-me se não será a inteligência a ocupar o lugar do cabelo. Agora tens um problema: como se penteia a inteligência ?

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