terça-feira, 13 de setembro de 2011

CARTA A UM JOVEM ESCRITOR VII

cartier-bresson
Após uma hora de prospecção encontro, enfim, a frase de Peter Sloterdijk que procurava há dias: «Alma é aquilo que não se mediatiza» (in O Estranhamento do Mundo, Relógio d’Água, 2008, Lisboa).
Apetece-me escrever qualquer coisa a partir daqui, mas não já.
Agora, folheando à esquerda e à direita, constato que o Sloterdijk é um verdadeiro designer na filosofia.
Evidentemente que Peter Sloterdijk é um dos filósofos actuais mais excitantes, digamos assim. O primeiro livro que li dele foi um livro de entrevistas de título “Ensaio sobre a Intoxicação Voluntária” (Fenda, 2001, Lisboa). É uma conversa instigativa, fascinante, a muitos títulos.
Mas só à segunda leitura é que reparei numa frase, que aliás já estava sublinhada, e que me parecia um achado. Eis a formulação:
«Aí, onde termina a história das religiões começa a história do design.».
É uma tremenda frase de efeito e que faz de imediato eco em nós: é isso mesmo, eureka, como é que não fui capaz de me lembrar disto!
E que bela citação, resulta sempre.
E usei a ideia duas ou três vezes em artigos.
Foi só quando reli o livro pela terceira vez, num dia de descontracção absoluta que me permitia petiscar nas letras e ideias sem a pressão de procurar um apoio funcional para qualquer coisa a escrever que, ao dar de novo com a frase, me acudiu perguntar: mas afinal, as leis do design, o seu telos, o que motiva esta disciplina, não estava já claramente presente nas catedrais góticas? Não há até uma banda desenhada franco-belga onde as catedrais góticas são transformadas em naves espaciais exactamente por causa da sua sugestão aerodinâmica? E porque me lembrarão tanto as cadeiras do design ergonómico de Alvaar Alto, um arquitecto e designer organicista, as linhas da escultura que se encontra nas igrejas românicas? E então dei conta de que frase do Sloterdijk talvez não fosse tão fiável e merecesse um exame mais atento aos seus fundamentos.
Foi condição básica para eu me libertar do fascínio da frase, que me obliterava o raciocínio, não andar à procura de nada, estar entregue a uma leitura deambulatória, arredia a uma utilidade imediata. Só nesta leitura sem tensão, dir-se-ia imotivada, é que enfrentei o livro de forma activa. Ou seja, parece-me que as leituras excessivamente orientadas, dada a pressão e a ansiedade, correm o risco de nos alhearem do detalhe que faz toda a diferença no essencial.
No fundo é como andar à procura de uma palavra – só nos vem quando já não a procuramos.
Mas tome-se outro exemplo:
«É característico dos místicos inverterem a tendência básica do desenvolvimento do líquido em sólido (…) os ensinamentos místicos são passíveis de serem interpretados (…) como escolas de mergulho (…)», (in Estranhamento do Mundo)
A adesão é imediata.
Contudo, algo em mim – o ácido úrico? – resiste a esta solubilidade total.
O design na filosofia – tal como o encontramos também em Nietzsche, autor de fórmulas brilhantes – é tão fascinante como decapitador. Assemelha-se a um farol nos olhos, encadeia.
Vejamo-lo agora num exemplo da literatura e do cinema. Em Fanny Owen, de Agustina Bessa Luís/Manoel de Oliveira, encontramos um puro efeito de design na célebre definição  de Fanny Owen: «a (i)alma é um vício!». A personagem era duma zona ao norte de Portugal onde as pronúncias mais acentuadas acrescentam um «i» às palavras começadas por «a» - e a demasia fonética duplicava o vício da (i)alma, o que parecia genial.
Mas houve “um chato”, o cineasta António Pedro de Vasconcelos que reparou que a frase se podia inverter, o que ficaria: «um vício é uma (i)alma», o que ficaria igualmente bem. APV fez este exercício para mostrar como o ilusionismo de alguma escrita nos faz perder um mínimo de reserva reflexiva.
Eu penso que ele tem alguma razão. Por isso tomei sempre a atitude de ler os autores da moda depois do seu pico de unanimidade, pois só aí descortinamos o que exista para além da momentânea alucinação colectiva.
Poucos sobrevivem.
Peço-vos para relerem Dan Brown, sabida a trama. É absolutamente vazio, Experimentem agora reler Dickens, Melville, Le Clezio, o Em Nome da Terra, de Vergílio Ferreira: não se esgotam.
Talvez porque correspondam ao que Sloterdijk, noutra arrancada fulgurante, sublinha: «A literatura apenas floresce enquanto a mania (leia-se no sentido de entusiasmo) pressupõe (…) um clima no qual os sujeitos estão predispostos a aguentar um máximo de pressão» (in O Estranhamento do Mundo)
Pressão. O que tem faltado à literatura que, como em 90% dos filmes, a gente lê e esquece no dia seguinte – não é?
Porque a pressão não nasce de uma montagem rápida ou de um suspense tecnicamente agarrado na unha, mas de um conflito onde colidam expectativas emocionais ou valores morais traduzíveis em conduta.
Talvez por isso, um conto breve de discussão entre pai, mãe e filho de Dalton Trevisan – o conto A Sopa, do livro Histórias Nada Exemplares, que se pode baixar no 4shared.com – oferece mais conflito, intensidade e aceleração emocionais que muitas perseguições de carro em filmes medíocres. Leia e descubra porquê.

2 comentários:

  1. Gostei muito do teu texto. Vou contar-te uma pequena história moral: um dia tive uma de entre muitas discussões com um filósofo analítico. Como é sabido, os analíticos são óptimos em quase tudo tirando o poder de análise propriamente dito. Eu estava a levar a coisa de vencida por 12-1, mais ou menos, e já não cabia em mim de orgulho filosófico germano-fenomenológico, até que ele se saiu com uma que me deixou a pensar, por vários motivos. Não me lembro a propósito de que aforismo, ele comentou: tenho como método inverter o sentido de uma frase para testar a solidez da tese que a sustenta. Assim, por exp. "o homem é a medida de todas as coisas" passaria a ser "o homem não é a medida de todas as coisas". Se conseguirmos suster ambas as posições, quer dizer que a posição original enferma de fraquezas insuspeitas. Na altura, achei o método demolidor. Assemelha-se de certo modo com o teu. Uma espécie de suspensão indagatória do juízo que se está a ter defronte até que por baixo do seu quilate estético se consiga focar a teia conceptual que o sustenta.
    Devo dizer-te uma coisa. Com a idade (ahahahaha) passei a não ter tanto medo desses exames. Um bom sofista distorce o que quiser. Até que a terra anda à volta do sol. Agora já não tenho receio de ver desmontadas as minhas pedras arquimédicas de sabedoria. Aprendi que do outro lado também há pasto para a cabeça.

    ResponderEliminar
  2. com certeza mau caro "radio de pilhas", e a esse metodo entre os sofistas chamava-se a "antilogia", propor uma coisa agora e provar a contraria. contudo com a idade (ahahahah) um gajo tambem percebe que o daney e o godard talvez tivessem alguma razao quando diziam que o travelling era uma questao de moral, e na literatura e o mesmo. olha, agora mesmo dizem-me que esta, neste momento, em leilao um manuscrito do Salinger por 36 500 euros. la mando eu a moral do Godard e do daney as favas. AC

    ResponderEliminar