terça-feira, 27 de setembro de 2011

LEITORES, PRECISAM-SE - DE PREFERÊNCIA VIVINHOS E BONS

os sonhos de pantagruel

O Sonho de Uma Noite de Verão, de Shakespeare, que hoje dei na aula, contém tudo o que se possa ensinar sobre o que seja uma construção dramática, uma peripécia e o seu volte-face, o valor do conflito como móbil desencadeador duma acção; sobre o que é uma micro-estrutura, e até as diferenças entre géneros e planos narrativos. É um fartar. É uma peça estruturalmente perfeita e até rapidíssima, apesar de (aos olhos da maioria) estar saturada em “gordura literária”, como no essencial as peças em verso.
Acho que foi o Harry Cohn, um dos grandes produtores do período clássico do cinema americano, quem, após se ter rebolado na cadeira durante o visionamento duma adaptação duma peça de Shakespeare, a recriminou, sentenciando: “este filme está cheio de citações!”.
Graças a Deus que O Sonho… está cheia de citações. Mas o que é extraordinário, ao ler-se esta ou outra peça de Shakespeare, é avaliar-se como era inteligente o público que fez de O Sonho duma Noite de Verão, o maior sucesso da carreiro do bardo.
Qual a surpresa, se como disse acima, é estruturalmente enxuta e perfeita? A surpresa reside no facto do ignaro povo e maioritariamente analfabeto do período isabelino aderir ao seu teatro e à sua linguagem (que hoje nos parece tão elaborada) sem a menor reserva, e aprendendo trechos de cor.
Vejamos este espantoso jogo de trocadilhos fonéticos:

«Demétrio
O rapaz que jaz é um ás da morte.
Lisandro
Ás que jaz é incapaz; é um zero à esquerda.
Teseu
Com a ajuda de um médico é capaz de se recuperar e voltar a ser um as-no»

Pensar que o espectador isabelino acolhia entusiasmado o wit, a qualidade deste humor, e reagia na hora, no timing certo, às deixas – o que não acontece com a maioria dos meus alunos – é descoroçoador.   
Há uma história da recepção literária ou dramatúrgica por fazer e seria utilíssima para derrotar certos mitos actuais que encharcam jornalistas, agentes culturais, e editores numa suficiência espasmódica e gelatinosa que os levou a interiorizar a crença de que o gosto médio não está preparado para o complexo e só compreende estruturas básicas e um nível lexical a roçar a decomposição onomatopaica, viciando completamente a literatura e o que nela é considerado aceitável e inteligível.
Hoje o Shakespeare não teria editor – o negócio que os idiotas perdiam – e seria aconselhado a aplainar os textos em nome da eficácia e da funcionalidade. Um homem como John Updike teria dificuldades em arranjar editor se começasse a editar vinte anos depois, pois foi sempre acusado de escrever bem demais.
A propósito de escrever e de “pensar bem demais”, li num blogue – não lembro qual –, que a “causa oficial” (veiculada nalguma revista literária) para uma eventual menor saída que os livros de Virgílio Ferreira teriam hoje junto do grande público estaria associada ao “facto” de que o tempo dos romances de ideias teria passado, tendo o bloguista lembrado com acerto que contra essa generalidade se levantava o êxito dos livros de Gonçalo M. Tavares, que escreve romances de ideias, o que evidentemente destrui a tentação de olhar-se para “o género” como uma moda passageira.
Ou seja, diz-se qualquer tolice para esconder a evidência de que, da mesma forma que nos últimos vinte anos se assistiu a uma puerilidade crescente nas histórias do cinema americano, estão a literatura e os seus responsáveis reféns de mitos redutores que esquecem que a inteligência é um item da expressão, quer da produtiva quer na sua recepção, e que o Gonçalo não deve ser visto como a excepção que confirma a regra.
Hoje há mais leitores que nunca no mundo, embora o seu nível médio seja espantosamente baixo. A aposta das editoras na exclusiva mecânica do enredo e na prioridade das estruturas funcionais, em detrimento da grande liberdade da criação, já levou o Kundera a falar em «testamentos traídos», e o grave é que não se ache grave que a enorme maioria dos milhões de pessoas que hoje consomem Dan Brown não esteja à altura de ler Rabelais, Cervantes, Shakespeare ou Diderot. É desastroso, parece-me, que não se considere lastimável que, cinco séculos depois dos foliões analfabetos que o citavam nas tabernas, se considere Shakespeare como um espectáculo para elites.
Ora, não se tenham dúvidas: é mais grave ler mal do que não ler.
Entretanto, para além das qualidades rítmicas e prosódicas, ou da originalidade da trama, adiantemos uma outra janela para a aferição do quid literário: tal como acontece na poesia, um bom romance, um bom conto, etc., é aquele em que por voltas que demos à frase se constata que não há uma palavra que aí consigamos substituir com vantagem; não há um sinónimo que aí caiba.
O que Northrop Fry articulava assim: «Em todas as estruturas verbais literárias, a orientação definitiva da significação é interna».
Peguemos em Setentrião de João Paulo Borges Coelho, por exemplo, e tente-se substituir uma palavra por sinónimo, uma expressão por outra: o parágrafo inteiro desfazer-se-ia, as palavras aí, mais do que servirem a função, estão engatadas. A língua parece galvanizada pela corrente de um inexaurível fluido que a resgata da opacidade. E não há nada a fazer, onde quer que se coloque o escopro não se acha uma brecha, uma desafinação, superfície oca: a pancada não pode senão ressaltar.  Nestes livros, todas as palavras, como acontece com as notas musicais na Sinfonia Eroica, de Beethoven (di-lo Leonardo Bernstein), são as únicas e necessárias ao desenvolvimento daquela pauta. Uma palavra diferente e o romance seria outro.
Diga-se que o mesmo se verifica em Passos em Volta, de Herberto Hélder, em Nome de Guerra, de Almada Negreiros, em Todo o Nome do Mundo, de José Amaro Dionísio, em Maina Mendes ou Casas Pardas de Maria Velho da Costa, em Ualalapi, de Ungulani Ba Ka Khosa, em Na Tua Face, de Vergílio Ferreira, em Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares, em Ambulância, de Manuel da Silva Ramos, em Um Copo de Cólera, de Raduan Nassar, entre muitos. Curiosamente, nenhum destes livros é estudado nas escolas, pelo menos em Portugal e Moçambique
Ao invés, a minha filha adolescente, que nas aulas tenta sobreviver ao aprendizado de figuras como a prolepse e a prosopopeia e que numa semana estuda a metonímia e noutra se amanha com a personificação, em vez de ser convidada a participar em vivas discussões acerca do que falam as obras, vê-se coagida pela pressão do mercado, que as escolas não sacodem, a ler livros programados para o formato juvenil.
Em vez de se confrontarem com Melville, Dickens, Mark Twain, Kafka, Paul Auster, os adolescentes são induzidos a ler livros em que infelizmente, por mais engenhosas que sejam as tramas, a linguagem se apresenta desmotivada - i.é, qualquer bom escritor pegaria naquelas “informações” e acharia uma forma mais rápida, eficaz e expressiva de as fazer passar, visto que, como no grosso dos best-sellers, nestas aventuras qualquer palavra se pode substituir por outra.
Não sei como pode ela apanhar o gosto pela literatura em livros onde, em nome da pedagogia, as palavras estão desvalorizadas e são moedas gastas, onde já não se vê a efígie.
Só vejo um meio de minimizar os estragos: é pegar em alguns contos de Jorge Luís Borges, ou de Conrad, e levá-la a fazer cópias; se o caso for grave, induzi-la a copiar O Relatório sobre Cegos, do Sabato.
Eis um exercício de que não se sai indemne e pelo qual se percebe que a literatura é uma experiência vital e não um mero entretenimento para consumidores de informação; e talvez haja a hipótese dos seus efeitos sobrevoarem a alergia para se converterem num amor à literatura.
  

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