segunda-feira, 12 de setembro de 2011

4X3: FALA CORPO

celia
«A ausência da dor equivale à presença do mundo. A presença da dor equivale à ausência do mundo. Em virtude destas equações, a dor transforma-se em poder», escreveu Elaine Scarry.
É o que desejaria ter escrito à cabeça do texto que fiz para a exposição de Camila Sousa. Mas Elaine não sou.
Por acaso conheci a Camila de miúda, e suponho que nos vimos 4 ou 5 vezes, mas o que interessa é que me apareceu em casa já crescida e madura, com um projecto de “antropologia visual” que me cativou e me fez aderir.
Inaugurou ontem na Faculdade de Medicina, em Maputo.
A sua exposição integra-se num projecto de Arte Pública, que se chama “Ocupações Temporárias” e tem outros cinco pólos na cidade. Registarei o que me parecer conforme, à medida que o visite. Mas agora quero focar-me no trabalho da Camila de que gostei muito.
Escrevi para o catálogo:
«Normalmente o corpo é uma cicatriz que se volta para dentro. É o tempo quem a faz declinar, escondendo as comissuras, os grampos da ferida, enquanto deixa de fora as rugas, e desponta em ossatura sob a pele. Mas corpos há cuja cicatriz se voltou para fora para devorar, como uma criatura, o seu hospedeiro.
O que é uma mulher? O que é um cárcere? Para Platão o corpo era o túmulo da alma. Muitas confissões religiosas encaram o corpo como presídio, sendo o corpo da mulher enfiado numa cela de pano. Quanto à “voluntariedade” desse emparedamento, o Foucault explicaria.
E o pior é quando, para além de não se ter sido ouvida nessa escolha, uma violência daninha, insidiosa, brutal, nos escama o corpo e a alma até explodirmos, rasgando o céu.
Em Moçambique, 80 e muitos por cento das mulheres encarceradas na prisão foram empurradas a isso por terem sido vítimas de violência doméstica. Demasiados anos. Um dia explodiram como o fruto de uma doença chamada androcentrismo, que entende o corpo da mulher como clausura, como pasto, ou utilidade temporária.
Uma mulher na prisão é uma mulher que rasgou o céu. Que se encapsulou para se defender e a quem não se perdoa não ter morrido dos vexames e maus-tratos que a devastaram anos a fio antes de desvairar, num grito mortífero. 
Acontece explodirmos, depois de camadas e camadas de situações em que o nosso corpo foi olhado como a aba de uma chávena. Uma chávena de que o parceiro se serve e quebra, caprichosamente.
4x3 designa o diâmetro das celas a que ficaram confinadas. É o diâmetro do grito.

Há seis meses que Camila de Sousa decidiu devolver uma voz e um rosto a algumas dessas mulheres que encontrou na Cadeia de Ndlavela. O seu trabalho é uma das coisas mais autênticas, dignas e bem conseguidas que vi nos últimos anos em Moçambique.  
A sua instalação comporta vários registos:
- temos as fotos em que o corpo das presidiárias é o documento da violência, e onde, ironicamente, se joga com o registo da fotografia-de-cadastro;
- temos as séries de fotos onde se configura a sua condição de presidiárias, expondo a tensão entre aqueles corpos e o espaço, entre os gestos do quotidiano e a clausura, e até as similitudes plásticas entre as marcas no corpo e as marcas nas paredes da cadeia - «rimas» terríveis, no sentido em que toda a vida elas se sentiram mulheres-objecto, sombras na parede;
- temos «os objectos» feitos a partir das suas memórias-âncora;
- temos o vídeo da figura de Mariamo, a interpelação do seu silêncio e a força da sua presença diante da câmara; o qual nos desnuda e obriga à reflexão, e, sobretudo, nos desafia a mostrarmos face à câmara a mesma serenidade, a mesma intensidade que a daquela presidiária – será um quase insuportável exercício de recolhimento;
- temos as fotos em que Camila as convidou a posar, esquecidas da sua condição de presidiárias; de modo a que cada uma restituísse a si mesmo a sua imagem de mulher, despertando para a sensualidade de que, como mulheres, têm o direito de não abdicarem – e esta belíssima série de imagens não apenas se sucede como se a dimensão do onírico, ou a do desejo, invadisse a impraticabilidade a que aquelas mulheres estão votadas, como é a prova da dimensão ética do projecto: Camila não “saca” delas as imagens, num gesto de reciprocidade, dá-lhes também o devaneio, a prontidão duma dignidade que se actualiza na beleza do corpo magnificado como corpo.
Há no projecto uma adequação total entre o conceito e a sua linguagem estética, tudo é orgânico nele, e por isso não é chocante dizermos que aquelas imagens são belas: Camila não está a estetizar o espaço que agride diariamente aquelas mulheres, mas antes as recoloca lá fora, nas imagens mentais onde elas projectam o melhor de si, o mais feliz conceito da sua feminilidade, e que Camila se limita a reproduzir.
Além disso, aquelas belas imagens entrosam-se no conceito amplo do projecto, onde perpassa igualmente um enorme desconforto: olhemos, por exemplo, a fotografia de Célia, acima reproduzida – uma das que prefiro. A desproporção entre a cama e o corpo de Célia tem algo de reticência lilliputiana, como se a vida lhe estivesse a retrair o corpo. Ressalta uma extrema violência nesta foto: é manifesto que o corpo de Célia está enquadrado num espaço artificial, que nunca será o seu espaço natural, a sua medida.
Até quando aquele espaço devorará o corpo de Célia, sem que esta perca a sua própria noção de corpo, é a questão irrespondida. Uma das mulheres fotografadas, quando entrou na prisão esqueceu a linguagem, teve de reaprender a falar.
A inteligência de escolher a Faculdade de Medicina para palco da sua instalação só reforça a sua natureza interpelativa:
os corpos femininos têm de deixar de ser considerados como expressões meramente anatómicas,
suportes para a taxinomia da dor, a mímica da asfixia, as cifras do hematoma, para palco da vigília de coágulos ou de crises ciáticas, o pus, as enxaquecas, como úteros úteis; ou, ainda, como superfície para as tatuagens sociais e a urdidura venosa com que se amansa, anestesia, o desejo e se reprime a liberdade e os direitos das mulheres; para lhes ser enfim devolvidos uma dimensão identitária, autónoma e singular, e um novo espaço de relação: ar e amor, por exemplo, sem amos de permeio. E, se possível, sem prisões para o corpo que só no diálogo com outro corpo amado ganha luz, o silêncio saciado que se segue à plenitude da palavra.
Por isso estas imagens de Camila de Sousa (em vez de “pornográficas”, como vilmente as qualificou um responsável de um Banco que lhe recuou apoio para o projecto) são absolutamente necessárias: para libertar as presidiárias, e a nós, que ainda não fizemos o suficiente para estancar a violência social sobre as mulheres e mudar as mentalidades. » 

   

3 comentários: