Texto lido na apresentacao do livro em Maputo, pelo academico "Joao" Cabrita, tal como saiu reportado na maior parte dos jornais:
Desde que em pequeno não me chamaram Ernesto e me retiraram assim importância ao nome, pois não acredito que um senhor com o ferro, o espírito, com os fluidos do Oscar Wilde chamasse a um livro Da importância de se chamar Ernesto, se isso não fosse vital para o entendimento do mundo e para a própria elucidação de cada pessoa no mundo, desde que me fizeram essa desfeita, repito, que me obceco em saber a razão de ser do nome dado às coisas.
Quando o João Paulo me deu este livro fiquei logo alarmado com o título: Cidade dos Espelhos remontava-me à agonia que eu sentia em miúdo no barbeiro, entalado entre o espelho da frente e o das costas e reproduzido a infinito. Ora eu, como Jorge Luis Borges, peço a Deus que me poupe de imagens ao espelho.
Fui então examinar quantas vezes aparece a palavra «espelho» neste livro e porquê.
Fiquei arrepiado, esta cidade deve ter uma dívida soberana estratosférica pois teve de hipotecar todos os seus espelhos. Pelo menos os inteiros. Na página trinta, o maldito aparece pela primeira vez designado, lê-se assim: «um espelho partido que nos devolve a imagem multiplicada em muitas possibilidades (um espelho que multiplica o céu carregado e o medo)». O primeiro espelho, esta partido e apascenta entre outros cacos.
Na segunda vez, na página 41, fala-se de soldaditos a fazer uma rusga, os quais são assim definidos: «não querem ser cegos e contudo temem ver», e adiante continua-se falando do receio dos magalas a ficarem sós nas veredas dos subúrbios e refere-se o susto «de um soldado que se vê solitário, e mesmo, para lá dele, quando nas superfícies lisas dos espelhos cada um vier a descobrir a miríade de reflexos que tem dentro!». Eu próprio sinto um tremor, ao dar conta que mesmo dentro de si o soldadito nunca se verá inteiro, ou de um relance, mas dividido, esquartejado por milhentos reflexos. Portanto, o primeiro espelho estava partido, no segundo é o sujeito que à partida está embutido por reflexos exteriores, que é o mesmo que dizer: é alguém sem imagem de si.
O terceiro espelho, na página 61, afunda-me na mais profunda angústia. Neste momento da narração é bom que se saiba que a polícia apanhou o cabecilha do atentado terrorista com que começa a novela e o tortura, e que os torturadores estão satisfeitos. Leia-se: «convencem-se de que ouvindo o prisioneiro estarão defronte de um espelho que reflecte tudo aquilo que verdadeiramente importa». E este espelho, neste caso, um eco, parece-me que repete não aquilo que é mas somente o que se quer ouvir.
O choque torna-se simétrico, se nos lembrarmos que o acto terrorista do primeiro capítulo foi perpetrado com bolas de sabão que continham um caldo bacteriológico mortífero. O que é que mais atrai nas bolas de sabão? A dança dos reflexos, à sua superfície, e a sua doce, alegre, difusa indefinição.
O quarto e o quinto espelho pertencem ao general, e já se sabe da importância dos generais na vida das cidades africanas. Um general é uma figura majestática, enredada na sua importância histórica, que antes de ser Ernesto já o era, e que todos os dias meditabundo treina para estátua.
Este general, está dividido entre a acção de ter de despir o seu robe cor de latão com riscas de açafrão – por causa das cortesãs que lhe inundam “a caserna” -, e a acção de mostrar à empregada que lhe lava o chão quem verdadeiramente manda ali, no três por quatro do chão que ela lava, e tem um tipo de espelho preferido: «um que não lhe dê o reflexo mas antes um vincado contraste». O contraste que se instala entre amo e senhor, entre uma sociedade que o serve e o seu olhar de milhafre.
O sexto, sétimo e oitavo espelhos menciona-os o narrador no capítulo final para num laivo conceptual explicar,
a) naquela cidade «ficam os objectos como espelhos dispersos em diálogos mudos»,
b) concluindo - e é neste golpe de ironia que o livro acaba -, que «a cidade dos espelhos ficará em suspenso, perdida neste jogo de reflexos».
Ora, o que é um jogo de reflexos, se não o sustenta um vínculo, uma mútua corrente emocional, uma reciprocidade? Uma bola de sabão à beira de estalar.
Portanto, dada a volta ao livro em oito espelhos, verifica-se que nenhum dos espelhos cumpriu a sua função, porque nenhum devolve qualquer face, uma réstia de rosto humano, um diálogo, e constatamos estar a cidade do livro destituída de algum tipo de vínculo que una objectos – dispersos -, pessoas e projectos.
Para além dos espelhos, há vários efeitos miméticos que perpassam pelo livro. Cito dois, logo no primeiro capítulo:
«’Onde diabo descobres estas coisas?’, pergunta Jeremias (o chefe dos terroristas) em voz baixa, como se fizesse a pergunta a si próprio.
‘Onde diabo descobres estas coisas’, imita Caia com a careta de sempre”. (ublinhado meu, pág. 13);
Depois das bolas de sabão atingirem o Templo, realizando em pleno a sua acção mortífera:
«E assim se propaga outra desgraça paralela à desgraça principal, aquela que faz com que os desgraçados a quem nada ainda aconteceu sofram a dobrar, pois enquanto os outros partem em grande enlevo – confundindo até os primeiros sintomas, na fracção de segundos em que os sentiram, com o clímax do prazer e da euforia – estes têm tempo de saber que é a morte que chega, e de intuir que depois dos companheiros chegará forçosamente a sua vez».
Os últimos a morrer sabem pela careta dos primeiros a morrer qual vai ser a sua máscara de morte e antecipam-na no seu íntimo, reproduzindo-a. Mas este cruel efeito mimético, tal como o de cima é mais uma marca de redundância na comunicação que um verdadeiro sinal de comunicação efectiva.
Julgo que j'a estamos entendidos quanto ao que se retrata nesta cidade futurista, sem nome, e já veremos por quê, do qual só se conhece a toponímia de uma Avenida, Louise, assim mesmo em estrangeiro colonês, cujo origem ou rasto se perdeu no tempo, e que brota dos escombros de um apogeu em si mesmo desmemoriado, como a identificação das estátuas que salpicam a Avenida.
O boulevar Louise, a Luizinha numa tradução à letra, é uma unha encravada no projecto marcial da cidade, um projecto de cidade-macho que prescinde de qualquer outro sentido de unidade para além do medo, do constrangimento, dos mansos arbítrios autoritários.
Uma cidade-macho é uma cidade onde se extraviou o rasto da solidariedade e da comunicação. Nesta cidade-macho onde os espelhos não devolvem qualquer imagem e as pessoas vivem no estranhamento mútuo que se sucede ao terem-se quebrado os fios do afecto e da reciprocidade, sem aquela memória trémula e ulcerada do feminino – a boulevard Luizinha – a cidade, diz-se, «não passaria de um arquipélago de aldeias desavindas, entretidas em ódios mútuos».
Olha, a Sommerchield e Xipamanine – felizmente que tudo isto se passa no futuro!
João Paulo, na Crónica da Rua 513.2, dera-nos em farsa os dramas do homem novo do socialismo, agora escreveu com esta novela “futurista”, absolutamente disfórica, uma purga para as utopias. Cidade dos Espelhos é uma novela da linhagem de «451 graus Fahrenheit», de Ray Bradbury, ou de «A Laranja Mecânica», ou que às vezes me lembra o genial Ismail Kadare, o albanês que desfez por dentro as falácias do regime de Enver Hoxa e a crueldade das tradições albanesas, e nela João Paulo ergue a sua visão do inferno.
Para Tolstoi o inferno é a sociedade na qual os ricos, ou os generais, esmagam os pobres. Os meios de evasão são os de sempre: álcool, ópio, jogo, droga e suicídio. Para Tolstoi o além não existe e o inferno está na organização social… Para Georges Bernanos, outro católico, o inferno é o de não se amar. Para Sartre, já se sabe, o inferno é os outros. Estes três infernos confluem como afluentes na Avenida Louise, e temperam a liga de um outro inferno que João Paulo propõe.
Cidade dos Espelhos novela faz-se de poucas personagens, um general, a sua mulher-a-dias, três terroristas, um deles cientista, uma avô, que é também mulher-a-dias, a procissão dos pobres, coadjuvantes e figurantes… (- engraçado como nas cidades-macho as mulheres ou são jovens punk ou, depois de reformadas, mulheres a dias).
O general auto-investe-se de importância porque é a única personagem a estar sempre no primeiro andar, a olhar a cidade de cima, da janela ou da varanda, como se estivesse no palanque do poder. Vantagem psicológica…
E a dado momento sai da varanda e entra em casa, e lemos: «O general vira as costas à paisagem. Na sua frente tem gelosias de ripa grossa para domesticar a luz que vem de fora; em seguida, leves batentes de rede que aprisionem os insecto curiosos; atrás dos batentes, portas de vidro martelado para dar cabo das imagens que ainda assim subsistirem; e, finalmente, um forro de tule, um ante-forro de gaze e um pesado reposteiro de brocado com o escudo e armas da república. Atravessa todas estas barreiras aconchegando a abas do roupão ao peito, de regresso à sua fortaleza privada».(pág. 79)
Esta extraordinária descrição de um homem que atravessa os vários mantos do real, quiçá a gelatina do tempo porque no caso de um herói - como é sempre um general nesta África que em vez de olhar e projectar o futuro se agarra aos feitos dos seus heróis na guerras de independência - se trata já de um nado-estátua, esta descrição em zoom, digo, realiza um movimento que na gíria literária se chama myse en âbime.
É um movimento especular – lá está -, que começou por designar, na heráldica, uma peça, no centro do escudo, que reproduz, em escala reduzida os contornos do próprio escudo. E, dizem os tratados, que na narrativa, a myse en âbime é a função dum episódio narrativo destinado a reflectir de uma forma reduzida, num ponto estratégico, e por homologia, o conjunto das estruturas da obra em que se insere.
A myse en abime mais famosa da literatura e a primeira é a que descreve o escudo de Aquiles onde vemos em zoom suceder-se um mundo onde nem faltam duas cidades.
É a este artifício narrativo nobre que tem direito o general, um verdadeiro Aquiles entre os seus.
E este efeito especular talvez nos explique a razão de não ter a cidade nome, porque o zoom, a myse-en-âbime deste livro só pára nos olhos do leitor.
Num dos raros momentos em que se assiste neste livro a uma orla de ternura, a avó vê o neto a dormir. O neto, o Caia, é um dos três terroristas que no início da novela abalaram a cidade com um crime hediondo, mas a avô vê como ele ressona levemente, e para ela, ele, diz-se, é «um pequeno anjo reflectido na íris da avó».
Batem à porta os soldados, à procura dele, mas a avó, contra a sua habitual passividade, age, e rapidamente tece em volta do neto um casulo com os fios da sua ternura, tornando-o invisível aos olhos de quem lhe procurava o paradeiro. A avó descobriu de repente que não lhe era possível manter-se indiferente e agiu.
A mise-en-âbime deste livro só pára na íris do leitor e a cidade futurista que ele convoca é provavelmente a cidade em que pachorrentemente o leitor atravessa o seus dias, a cidade descarnada, indiferente, atormentada, deste, lê-se no livro, «futuro que não deu em nada».
Este livro incómodo, onde nos reconhecemos como no espelho que lhe falta, convida-nos a deixarmos a passividade, o medo, para intentarmos ao menos o plinto da reciprocidade, de modo a que cidade (a cidade do seu leitor, Maputo ou outras) volte a ser uma teia credível de relações humanas e não apenas o boulevard onde, por entre buzinas, se exibem os heróis, os velhos e novos senhores da cidade.
«O inverno dos vivos não é coisa que esteja para chegar; e existe um inferno, é aquele que já temos, que habitamos todos os dias e nele estamos juntos. Existem duas formas de não sofrer. A primeira é facilmente conseguida pela maioria: aceitar o inferno, tornar-se ponto dele a ponto de não o ver. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: procurar e saber reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não é o inferno, e fazê-lo durar e oferecer o seu lugar», escreveu Calvino, a fechar as suas Cidades Invisíveis.
Cidades sem Espelho, como esta de João Paulo, como todas as cidades do mundo onde prevalece o poder dos ricos e a materialidade mais cínica substituiu a ética.
É um livro incómodo mas, com a humanidade de que o João Paulo – que é um tchekoviano a dar uns passos para o Gogol – é capaz, é um livro que aponta sem acusar e muitas vezes faz-nos sorrir. Vou dar dois breves exemplos:
«O general vem à varanda. Enverga um roupão de seda cor de latão com eflúvio de açafrão. O seu corpo é o resultado do grotesto cânone de um médico louco: tronco maciço subjugando umas perninhas finas, duas sobras de corpos diferentes num corpo só. A sua alma é seca como a raiz de uma macieira; o nariz, uma explosão de substâncias moles que o tempo foi endurecendo.
Mas o olhar, ah o olhar!» (página 24, sublinhado meu).
«É certo que as sentinelas gostariam de atrair algumas mulheres assim como a luz atrai os insectos. Pensam nisso e empurram os elmos para a nuca, deixam descair as armas até as coronhas ficarem assentes no chão, esticam o peito para deixar refulgir o botões.
Todavia, o subúrbio continua a ser uma esquiva amêijoa fechada».
No capítulo 13, numa engenhosa montagem paralela (um recurso cinematografico que escapou a João Miguel Tavares), a narrativa põem em contraste o enterro de um pobre e o de um aviador, outro herói com direito a discursos e salvas, e até a um pato atingido pelas salvas. Pena que a promessa duma tal refeição fosse tardia, porque afinal o herói, como o pobre, já está embrulhado na enxuta «mortalha de linho alvo» com que a morte democratiza o que parecia irreconciliável. Este jogo de montagem funciona, again, como um efeito especular, só que invertido: a dessimetria do tratamento social face aos dois homens que convergem no ponto verdadeiro que os une. Simultaneamente assistimos à impaciência do coveiro (“há mais a quem enterrar…”) e à sua psicologia de pobre alienado aos seus: «Nada pior para um pobre que a lentidão de outro pobre.» (pág., 88), terrível formulação do egoísmo colectivo.
Por fim, um aviso e um reconhecimento. Este era o livro mais improvável de se lançar depois da efusividade de O Olho de Herzog. Foi preciso uma grande coragem do autor para escolher esta fábula sombria para suceder a um êxito. Eu julgo que isto dá a medida da honestidade do projecto do João Paulo: escolheu o mais difícil. O fácil era repetir-se.
Cidade dos Espelhos não é um livro fácil, é um livro que se pode estranhar à primeira, mas que galvaniza depois quando se começam a descortinar os nexos. Não é um livro com chave mas não é uma porta escancarada; da mesma forma que nos desafia a tirar a mordaça da indiferença exige que demos um passo para ele, exige que o leitor não se exima do seu papel de intérprete, e que active a sua inteligência, a sua energia de quando ainda acreditava que as coisas podiam mudar. O livro exige ao leitor o repto da mesma disciplina que foi necessária para o escrever.
Neste sentido é um livro que interpela, e como todos os livros que interpelam ficam. Pelo menos os livros doidos onde as árvores são todas sintéticas e choram quando passa o cortejo fúnebre dos generais. Funguemos com elas, porque senão virá perseguir-nos o espelho de Oscar Wilde, o inferno de Dorian Gray, e sugar-nos a alma.
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