sábado, 3 de setembro de 2011

DEFESA DO MANIFESTO

que espelho lhe deu?
Sobre o livro Cidade dos Espelhos, lê-se na Time Out:
«Contava Richard Brooks que a melhor lição de cinema que recebeu na vida foi-lhe dada por John Ford, que certo dia o fechou numa sala a ver um filme porno. Quando o ambiente já estava a ficar um pouco embaraçante, Ford parou o filme, acendeu as luzes, dirigiu-se a Brooks, e disse apenas: “get to the fucking point”.
João Paulo Borges Coelho, escritor moçambicano de 55 anos nascido no Porto, que deu nas vistas quando em 2009 venceu o chorudo prémio Leya (100 mil euros) graças ao romance O Olho de Hertzog, precisava de ter escutado o sábio conselho de Ford antes de se ter lançado na escrita de Cidade dos Espelhos. O livro é apresentado como uma “novela futurista”, e de facto tudo se passa num tempo de árvores de plástico e bactérias mortíferas, numa época não esclarecida e numa cidade pouco definida, o que é geralmente um código para “parábola pessimista sobre um futuro tramado”. Confirma-se: há três assaltantes/ terroristas/ revolucionários, um regime autoritário que os persegue, uma velha, um general, mastins, uma clausura opressiva.
Borges Coelho sabe escrever, e não faltam formulações felizes (“os espelhos não se cansam nem se enchem, porque nada guardam”), mas o engenho da linguagem esgota-se em si mesmo, porque falta sempre história. Cidade dos Espelhos é como um casaco vistoso que se tenta arrumar num armário sem cabides: estamos sempre à espera que apareça uma estrutura de apoio, um assomo de sentido narrativo que impeça as palavras de desaparecerem no ar. Em vão. »
João Miguel Tavares
terça-feira, 22 de Fevereiro de 2011

1
Achei graça que depois de ter lido o livro três vezes e de julgar que tinha recenseado todas as vezes que a palavra espelho aparece no texto, João Miguel Tavares na sua leitura imensamente distraída do livro tenha captado uma que me escapou, “os espelhos não se cansam nem se enchem, porque nada guardam”.
2
João Miguel Tavares, de quem publiquei uns poemas numa antologia, é um bom tipo que escreve sobre cinema e livros, e sofre excessivamente da influência do cinema.
Acontece que contar esta anedota do cinema (gira) a pretexto deste livro é um erro. John Ford é um dos grandes expoentes da expressão condutivista do cinema enquanto a literatura – esta literatura - é o contrário, uma margem para as zonas intersticiais. Por isso, sente João Miguel Tavares que em Cidade dos Espelhos “falta sempre história”, quando ela está lá concentradíssima, nas dobras. O problema é que ela só é captada imediatamente para quem vive em África ou para quem, daqui a 20, 30 anos, na Europa, viver nos escombros das cidades ulceradas pela sua crescente periferização. Neste sentido é um livro futurista: o seu futuro é póstumo.
Este livro terá de facto, neste momento, alguma dificuldade de penetração numa geração de leitores condicionada pelo anzol da eficácia que o cinema e a influência dominante da literatura americana reputam como único valor. Para esta geração, pós-simbólica, um livro como este, mais indiciário que narrativo será de difícil compreensão. Da mesma forma que Caos, de Gombrowicz, ou que os romances de Ernesto Sabato, lhes devem parecer livros extraordinariamente bem escritos mas chatos, “onde falta sempre alguma história”. Ah, como Nabokov lhes parecerá saturado de metáforas! Por outro lado, Murakami, que me enfada de morte porque não deixa absolutamente nada para o leitor imaginar, é um ícone.
É ao que o cinema conduziu os leitores: formou uma geração de ejaculadores prematuros.
Mas depois desta geração saturada pela trivialidade do relativismo hodierno, pela lei do eterno refluxo, virá outra que voltará a preferir Lautréamont à eficácia de Dan Brown.   
Escreve João Miguel Tavares, depreciativamente: «tudo se passa num tempo de árvores de plástico e bactérias mortíferas, numa época não esclarecida e numa cidade pouco definida, o que é geralmente um código para “parábola pessimista sobre um futuro tramado”. Confirma-se: há três assaltantes/ terroristas/ revolucionários, um regime autoritário que os persegue, uma velha, um general, mastins, uma clausura opressiva.», esquecendo-se  de uma regra de ouro ditada por outro cineasta, Hichtcock: na criatividade, mais vale partir de lugares-comuns do que chegar a eles. É o caso, e o que interessa nesta novela é o que está no meio, nos interstícios.
3
«Escrevi este livro como um manifesto pela autonomia da literatura…» disse o João Paulo, no lançamento do livro, em Maputo. Autonomia em relação ao real, e às grelhas e fórmulas do sistema narrativo a que um autor se vê sujeito, depois de um certo êxito. Autonomia em relação a um estilo, que seja uma marca de autor.
João Paulo que já demonstrou várias vezes que sabe escrever uma história e muito bem, conduzindo o leitor nos meandros da peripécia – e bastariam As Visitas do Sr. Valdez, Meridião e Setentrião ou O Olho de Herzog, quis desta vez fazer um livro liberto das fórmulas da eficácia, onde a palavra valesse por si e a expressão literária não estivesse subjugada pela diegese. Em tempos em que Paradiso, de Lezama Lima, ou Nadja, de Breton, eram exaltados, este intento não pareceria estranho. Mas em época de frívolo consumo, onde tudo são conteúdos, a tarefa é ingrata e dá azo a equívocos.
Sobretudo para quem acha que se pode ler um livro do autor sem ler os precedentes, enquadrando-o num itinerário e num projecto que é neste momento um dos mais fecundos da literatura em língua portuguesa.
Mas para isso é preciso tempo, a coragem de arranjar tempo, e de não nos deixarmos arrastar pela voragem da actualidade. Estou certo de que João Miguel Tavares, depois de fazer uma leitura extensa da obra de João Paulo perceberá como o livro lhe passou absolutamente ao lado.   
E para quê regressar ao puro prazer do texto, desregulando-lhe as funcionalidades? Para que a língua não se torne «um molusco moribundo contorcendo-se entre os dentes», que são «lápides de palavras enterradas».(pág. 66)

 

1 comentário:

  1. acordei com a sensacao de que me enganei no joao migel tavares e que o confundi com um colega dele do Diario de Noticias. nao e relevante para o essencial do texto e este jmt tambem e um bom tipo que nao merecia ter feito uma leitura tao apressada do livro

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