domingo, 11 de setembro de 2011

A BOA VIZINHANÇA

serão gémeos? são as fotografias do relatório final
A colheita de sábado, um contito:


A linguagem é tramada mas permite-nos recortar o inexprimível e contar como o Zibelina deu com os ossos no céu. Embutidos na transparência do azul. Bastou um tiro com uma carabina para caça grossa.
A arma deu um coice no ombro do guarda-fronteiriço, que se aproximou do morto a massajar a omoplata. Antes de o virar com um pé, cuspiu.
A arma era potente, a cratera sanguinolenta devorava-lhe metade do peito. Mirou os canos da carabina, à cata de fumo. Nada.
Feio como as cobras, aquele morto. Tinha um cabelo à rasta, cãs que se afundavam na cara chupada, duas verrugas, uma em cada aleta (nunca tinha visto igual simetria), e um colete de fotógrafo que lhe ficava a boiar.
Da mochila, esventrada pelo tiro, saía, destruída, uma lente de máquina fotográfica. Nem se deu ao trabalho de desapertar os atilhos da mochila; com a faca do mato alargou o buraco, tirou o carrego e dispôs os objectos pelo chão.
Era uma carga estranha: uma barra de haxixe (aquilo valia para cima de mil dólares, havia de escondê-la no buraco da mafurreira no quintal da casa); duas t-shirts, duas cuecas, três latas de atum, umas linguiças plastificadas, ovos, pão, uma frigideira, dois isqueiros, três maços Palmar, dois frascos grandes com fetos lá dentro, conservados num líquido, como se fossem picles. E a máquina fotográfica destruída (uma pena). Num bolso do colete havia trezentos dólares em notas de cinquenta dobrados sobre mil e trezentos meticais (- sorte, estar sozinho…).
Olhou de novo a cara do morto. Nunca o tinha visto.
O que o intrigava era os dois fetos. Resolveu telefonar para o primo, que trabalhava como guarda no Museu de História Natural, em Maputo:
- Mbate, sou eu, o Artur… ya brada, tudo bem… e a cunhada como vai?... como? Mulher é fogo… Mano, lhe telefono porque limpei o sebo a um traficas, o man tem na mochila dois fetos de elefante… não é tanga… juro, iguaizinhos a esses… nem eu, pá, mandei-o parar três vezes e o man nada, antes que levasse o tiro dei eu… E o gajo tinha dois fetos na mochila… não são daí? Não houve roubo? Então kilharam alguma elefanta, na reserva… Ouviste falar de quem faça bizzniss com os fetos? Como é que é? Colecções na África-do-Sul? É o costume… E isso deve dar uma grana… Cinco mil? Por aquela gelatina? Ya… foda é o relatório… Tem people maningue crazy… Eh, pega leve… Tenho de ir, depois faço-te a ocorrência… ya, estamos juntos… 
Voltou a examinar os bolsos do colete. Num deles achou um papelinho enrolado com dois números de telefone.
Ligou para o primeiro. Enquanto conversava viu que os corvos se aproximavam do cadáver. Encolheu os ombros, virou as costas. A conversa não correu mal.
Curioso, soergueu o morto pelos colarinhos e deu-lhe duas galhetas só para lhe sentir os ossos. Este cabrão levou a vidinha a comer galinha, pensou. Virou-o de novo e perscrutou-lhe os bolsos de trás. Tinha o bilhete de identidade moçambicano. Leu: Zibelina Capristano Guente, casado. Quem se deitaria com tão fraco descaminho?

Duas horas depois chegou a casa com a mochila e uma gazela, que entretanto caçara.
A mulher tinha o banho preparado.
Acendia uma cigarrilha, deitado na banheira de água tépida, quando a mulher lhe veio perguntar:
- Marido, aquele coração que trouxeste num saco é de quem?
Fitou-a numa reprimenda, antes de lhe sair:
- Coração de gazela…
- Gazela não tem dois coração… - retorquiu ela, inquieta.
- E homem não tem espírito? Se homem tem duas sombra porque não tem gazela dois coração? – e imperativo - Esta tem… corta em fatia e faz como de costume, que mister Blacktie vem jantar connosco…
- Não sei que vês tu nesse mulungo*…
- Emprestou-me a arma. É treinador do meu clube. E já viste preto chamado Mulungo? Mamã, faz como te digo…

Blacktie, na varanda, afastou um bocadinho para o lado o painel solar, acomodou a cadeira de plástico e sentou-se. O seu rosto esplendia ansiedade:
- Então Ntundo, apanhaste gazela?
- Of course! Um maconde não perdoa…
- Gostaste da arma?
- É fêmea, dá coice mas no fim, crazy, anicha à mão…
- Yes… - respondeu o outro, sorrindo – quando se é home habilidoso…
- Of course…
Ntundo levantou-se, atravessou a penumbra e entrou dentro de casa, donde saiu dez segundos depois com a carabina na mão:
- Tome, it’s yourse… É boa para caçador de elefantes e não de gazela. Desfez a cara do bicho…
- Te disse…
- E quis ver, já vi…
Voltou a estender-lhe a arma, que o outro aceitou.
- And now?
- Gazela apanha-se à mão… se assobia e diz come in… e corta-se o pescoço na cama…
Blacktie anui, galhofeiro:
- Ntundo é home habilidoso e sábio de mulheres…
- Yes, i’m a beatiful…
Riem com gosto.
- Fizeste o coraçon?
- Of course… -Ntundo corta, sacana, sabendo como picar o outro - A equipa do mister é que voltou a perder este domingo… Como é que Ferroviário perde com a Liga Muçulmana, depois de estar a ganhar dois zero?
Blacktie puxa dos seus brios de treinador experimentado – que já levara três equipas da Liga B da África-do-Sul a subir de divisão – e tenta justificar o desnorte da sua equipa.
Um morcego ziguezagueia no violeta do lusco-fusco quando Lisa traz para a mesa, atrás deles, a tijela com o mutchuchu, um prato com o coração fatiado, uma travessa com nacos assados de gazela, e outro prato com linguiças.
Blacktie levantava-se e vai ao fô by fô** buscar o vinho, uma pomada chilena de arromba, garante.
- Frontera… - sussurra Ntundo, entre dentes, com a presciência dum maconde que já viu tudo sobre a generosidade dum bóer.
Blacktie, com olhos gulosos, atirou-se ao coração.
- Melhor que esse, só de cobra… - avisa Ntuno, que corta a linguiça.
Há linguiças do diabo, mas daquela ressumava o inexprimível e contava como o Zibelina bateu com os ossos no céu.

* branco, em schangana
** jipe 

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