terça-feira, 27 de setembro de 2011

NAS CUVETES DE DEUS, O CIRCO




Nas cuvetes do frigorífico de deus
congelam o génio, o santo, o guarda-redes de andebol que lastimei ser, e o director de revistas a que falhei achar o rasto,
congela a prótese de Mário Cesariny de Vasconcelos, tão parecida com a minha, sobretudo quando em poisio sobre o pulso;
congela a compaixão de King Kong, que não passava dum animal de hábitos;
congela o escroto de Martin Amis que lhe caiu putrefacto depois de ter escrito o inane «Experiência»,
congela o lóbulo direito de Herzog, vomitado pela bruxa de Hollywood, e uma taça de vinho das adegas de Coppola, a única gema depois de «Apocalipse Now»;
congela a erudição das nascentes que petrificou em rabujentos e despóticos os filhos de Joaquim;
congela o meu hábito de ceder, de ser uma Maria vai com as outras, enganando-me no bazar das sombras em que me restituo;
congela a icterícia com que muitos que conheço se libertam da alma;
congela a cura contra os moralistas de quem dissinto ao átomo;
nas cuvetes do frigorífico de deus
congelam os fulminantes da minha infância, em companhia dos quais nunca fui feliz; 
congela a arte do meu pai pintor de domingo, as suas representações de penicos pejados de malmequeres e margaridas que ele vendia num gracejo incontido aos burgueses da Aroeira;
congela a gaya ciência, onde profundidade e petulância quase de frase em frase se solapam mutuamente;
congela uma pontada do mistral que me trouxeram de França;
congela a minha ideia de que tudo o que acontece, acontece “apesar”;
congela a bola de golfe que um dia em tróia quase engoli;
congela a saudade das minhas filhas que não soube merecer;
congela a abelha que se enfiou no forro do meu casaco e cujo zumbido excitava as raparigas;
congela, ó Carlos, num paralítico a baía de Maputo, Delagoa Bay, e os seus hipopótamos pretéritos;
congela as pegadas de um flamingo coxo que persegui na foz do Lúrio,
congela o inelutável Mugabe, que com os dedos de barbeiro de Estaline mandou chambocar* uma povoação inteira que votou contra si nas eleições, e a quem o poder africano reverencia;
congelam os comprimidos para cavalo que Passos Coelho dá às criancinhas;
congelam as sobrancelhas de Alberto João Jardim, um espanador para as partes gagas de todas as freiras anãs do mundo;
congelam os milhafres com que os orgulhosos povos bantu reproduzem o racismo que ontem sofreram, iguaizinhos aos seus carrascos;
congela a minha simpatia por Catarina Furtado, em Ana Belmonte, uma das minhas últimas fraquezas;
congela a minha homossexualidade latente, denegada, motivada por afinal só me sobressaltarem pitas** mas não o Pitta, tal caniço;
congela o ascensional, vigoroso, paciente rancor da grandeza;
congelam os desertos nascidos de cada vez que me não foi devolvido um relance de ternura;
congela um círculo de Dante, o sétimo, aquele onde os suicidas se transformam em dragoeiros, por não conseguirem desapertar os atilhos da cobardia;
congelam todas as palavras em que me contradisse com o mais cobiçado desplante;
congela o descaramento dos meus olhos que te reclamam “ama-me ao menos mais esta noite, por favor…”;
na cuvete de deus, por quem já nem os cães juram, garantem os gregos, congela uma pedra tão dura que dela a água não desperta.

  *chambocar – bater com cassetetes nas nádegas
**pita – nome popular que se dá às miúdas
 

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