Vá-se lá saber porquê, ou apenas por aquele mecanismo do sonho a que Freud chama «a deslocação», hoje readormeci à noite depois de ter espreitado as notícias no «Público» on line, onde li que havia sido descoberto na China um cogumelo de dez metros de diâmetro, e hoje de manhã, assim que me levantei fui à estante e saquei dois livros de Guillevic (1907-1997), -passei dos fungos para as bactérias - um sibilino poeta francês que me desafiou sempre e a que tenho resistido, porque é dum despojamento que não se deve trair, sendo dificílimo traduzir a extrema tensão que está por detrás da sua aparente simplicidade.
Não fiquei descontente, por isso partilho.
Quanto à cesura, ao tipo de verso curto que lhe é uso, Guillevic, num livro de entrevistas, confessa que o seu estilo lhe chegou num sonho, onde se via a gravar poemas a canivete numa árvore. Ora, como num tronco duma árvore não cabem alexandrinos...
O senhor com o olhar de gnomo da foto é o Guillevic, o que aliás entronca com o que escreve pois é um dos poetas menos antropocêntricos que conheço.
Bactéria
A água,
O que parece é.
Seja antes
Ou depois da morte
Da bactéria.
*
A mesma água.
Talvez.
*
A mesma
Descendo a rampa do sol.
Talvez.
*
A mesma água
Antes que aí houvesse
Bactérias.
É suposto.
*
Apresenta-se o charco
À beira do oceano.
O fluxo e refluxo
Das bactérias.
*
Nessa água aí
Pela primeira vez,
A morte
Duma bactéria.
*
O fluxo, o refluxo.
A mesma água.
O mesmo
Sol em declínio.
O mesmo?
*
O que
Se abriria? O que
Se fecharia?
Se fosse o oceano
Que a bactéria
Encontrasse morto
Ao nascer do sol.
de Étier, 1979
ELA
Ela marcha
O ar a porta,
E abre um espaço
Cada vez mais presente.
*
O ar
É um feixe de rios
Que nós não vemos.
E é ela o seu oceano.
*
A gravidade pousou nela
Apenas o necessário
Para que a terra
A retenha.
*
Ela temia antes de mais
A luz demasiado intensa
Mais intensa que aquela
Que proclama o seu corpo.
*
Ela tem de árvore
O que esta
Cala de si mesmo.
*
Portadora
Da ternura suficiente
Que lhe permite ocultá-la.
*
Ela tem a voz dos pássaros
Quando a primavera
Os entretêm.
*
E possui
O que faz que se olhe
A corrida água do ribeiro
Sem nunca nos entediarmos.
*
Nela se inspiram
As flores, os corais,
O vaivém do sol.
*
Sobre ela
Mesmo o negro
Torna-se uma cor
*
Ela faz cantar
As linhas do seu corpo
Sobre um fundo que ela inventa.
*
Da serpente, ela tem
A ductilidade
E a prontidão da astúcia
Para se ser o que é.
*
Ela pode também
Ficar colérica
Como ao regato
Sucede a cascata.
*
Ela sabe
Que não será
Sempre a mesma,
Ela faz como se.
*
Ela é uma falta
Que tem o mistério
De se manifestar.
*
Ela é a junção de elementos
No nó
Que a perfura.
*
Ela marcha
Para a sua consagração
Pelo que a cerca
E cercará.
*
Assim que ela chega
A sombra se faz penumbra.
*
A árvore
Está enraizada na terra,
Ela deita as raízes
No centro.
*
Ela não é tão segura
De si mesmo
Que por vezes
Não a domine o seu poder.
*
Quando ela opera
Desfaz-se em sonhos
*
Sempre em luta
Mas contra quem?
Ela mesmo
não o sabe.
Qualquer coisa
Que esgaravata o espaço
E se nutre
De luz.
*
Não importa onde ela se dirija
É a sua senda.
*
É nela
Que as curvas
Se afeiçoam, perfeitas.
*
Esteja onde estiver
É-lhe devida a palavra
Como o rumor às fontes
Em pleno bosque.
*
Se sobre si mesmo escorre
A água encontra a sua origem.
*
Nomear
A beleza do dia?
Basta-lhe aparecer
Na ombreira da porta.
*
Ela é carne
Ela é espírito
Ela é a carne do espírito.
*
O seu olhar
Diz o que ela pensa
Do seu interior
Da sua aparência.
*
Os seus olhos são de firmamento
E são também vulcão
Vaticinam um destino.
*
Os seus cílios
São a lembrança
Das florestas originais
*
As suas mãos testemunham
Como as pétalas
Que espreitam o perigo
*
Onde está a montanha
Que teria a paixão
De que falam os seus joelhos?
*
Os seus seios
Guardam o segredo,
Apelam: silêncio.
Eles são o que ela tem
De mais planetário.
*
Quando ela ama
Toda a terra
Ama com ela,
Através dela.
*
Se ela não estivesse
Quem diria hoje?
*
Só ela
Faz barragem
Aos assaltos do horizonte
Para te aliviar
Dessa hipoteca
Ininterrupta.
*
Frequentemente
O seu olhar
Solicita a tua inocência.
*
O seu sorriso
É o fruto da aliança
Do futuro
E do planeta.
*
Sol
E lua em conjunção
Custódia
Da terra.
*
Vejo-a
Nua no horizonte,
Grandeza natural,
Ou seja
Os pés sobre a planície
A cabeça no zénite.
de Possibles Futurs, 1989
Obrigado!
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