quarta-feira, 3 de agosto de 2011

VERSOS DO GNOMO: GUILLEVIC 1


Vá-se lá saber porquê, ou apenas por aquele mecanismo do sonho a que Freud chama «a deslocação», hoje readormeci à noite depois de ter espreitado as notícias no «Público» on line, onde li que havia sido descoberto na China um cogumelo de dez metros de diâmetro, e hoje de manhã, assim que me levantei fui à estante e saquei dois livros de Guillevic (1907-1997), -passei dos fungos para as bactérias - um sibilino poeta francês que me desafiou sempre e a que tenho resistido, porque é dum despojamento que não se deve trair, sendo dificílimo traduzir a extrema tensão que está por detrás da sua aparente simplicidade.
Não fiquei descontente, por isso partilho.
Quanto à cesura, ao tipo de verso curto que lhe é uso, Guillevic, num livro de entrevistas, confessa que o seu estilo lhe chegou num sonho, onde se via a gravar poemas a canivete numa árvore. Ora, como num tronco duma árvore não cabem alexandrinos...
O senhor com o olhar de gnomo da foto é o Guillevic, o que aliás entronca com o que escreve pois é um dos poetas menos antropocêntricos que conheço.

Bactéria

A água,
O que parece é.

Seja antes
Ou depois da morte

Da bactéria.

*

A mesma água.

Talvez.

*

A mesma
Descendo a rampa do sol.

Talvez.

*

A mesma água

Antes que aí houvesse
Bactérias.

É suposto.

*

Apresenta-se o charco
À beira do oceano.

O fluxo e refluxo
Das bactérias.

*

Nessa água aí
Pela primeira vez,

A morte
Duma bactéria.

*

O fluxo, o refluxo.

A mesma água.

O mesmo
Sol em declínio.

O mesmo?

*

O que
Se abriria? O que
Se fecharia?

Se fosse o oceano
Que a bactéria

Encontrasse morto
Ao nascer do sol.

de Étier, 1979


ELA

Ela marcha
O ar a porta,

E abre um espaço
Cada vez mais presente.

*

O ar
É um feixe de rios
Que nós não vemos.

E é ela o seu oceano.

*

A gravidade pousou nela
Apenas o necessário
Para que a terra
A retenha.

*

Ela temia antes de mais
A luz demasiado intensa

Mais intensa que aquela
Que proclama o seu corpo.

*

Ela tem de árvore
O que esta
Cala de si mesmo.

*

Portadora
Da ternura suficiente
Que lhe permite ocultá-la.

*

Ela tem a voz dos pássaros
Quando a primavera
Os entretêm.

*

E possui
O que faz que se olhe

A corrida água do ribeiro
Sem nunca nos entediarmos.

*

Nela se inspiram

As flores, os corais,
O vaivém do sol.

*

Sobre ela
Mesmo o negro
Torna-se uma cor

*

Ela faz cantar
As linhas do seu corpo
Sobre um fundo que ela inventa.

*

Da serpente, ela tem
A ductilidade

E a prontidão da astúcia
Para se ser o que é.

*

Ela pode também
Ficar colérica

Como ao regato
Sucede a cascata.

*

Ela sabe
Que não será
Sempre a mesma,

Ela faz como se.

*

Ela é uma falta
Que tem o mistério
De se manifestar.

*

Ela é a junção de elementos
No nó
Que a perfura.

*

Ela marcha
Para a sua consagração

Pelo que a cerca
E cercará.

*

Assim que ela chega
A sombra se faz penumbra.

*

A árvore
Está enraizada na terra,

Ela deita as raízes
No centro.

*

Ela não é tão segura
De si mesmo

Que por vezes
Não a domine o seu poder.

*

Quando ela opera
Desfaz-se em sonhos

*

Sempre em luta
Mas contra quem?

Ela mesmo
não o sabe.

Qualquer coisa
Que esgaravata o espaço

E se nutre
De luz.

*

Não importa onde ela se dirija
É a sua senda.

*

É nela
Que as curvas

Se afeiçoam, perfeitas.

*

Esteja onde estiver
É-lhe devida a palavra

Como o rumor às fontes
Em pleno bosque.

*

Se sobre si mesmo escorre
A água encontra a sua origem.

*

Nomear
A beleza do dia?

Basta-lhe aparecer
Na ombreira da porta.

*
Ela é carne
Ela é espírito

Ela é a carne do espírito.

*
O seu olhar
Diz o que ela pensa

Do seu interior
Da sua aparência.

*

Os seus olhos são de firmamento
E são também vulcão

Vaticinam um destino.

*

Os seus cílios
São a lembrança
Das florestas originais

*

As suas mãos testemunham
Como as pétalas
Que espreitam o perigo

*

Onde está a montanha
Que teria a paixão
De que falam os seus joelhos?

*

Os seus seios
Guardam o segredo,

Apelam:  silêncio.

Eles são o que ela tem
De mais planetário.

*

Quando ela ama
Toda a terra

Ama com ela,
Através dela.

*

Se ela não estivesse
Quem diria hoje?

*

Só ela
Faz barragem
Aos assaltos do horizonte

Para te aliviar
Dessa hipoteca
Ininterrupta.

*

Frequentemente
O seu olhar

Solicita a tua inocência.

*

O seu sorriso
É o fruto da aliança

Do futuro
E do planeta.

*

Sol
E lua em conjunção

Custódia
Da terra.

*

Vejo-a
Nua no horizonte,

Grandeza natural,
Ou seja

Os pés sobre a planície
A cabeça no zénite.

de Possibles Futurs, 1989





1 comentário: