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Como já contei aqui, a minha casa actual (um apartamento muito agradável e de dimensões que em Lisboa me custariam os olhos da cara) situa-se numa zona eminentemente popular de Maputo, um bairro por cujos passeios se estende um verdadeiro formigueiro humano, com muito comércio, barracas e tasquinhas de todo o género e feitio, nas quais o néon disputa o espaço ao zinco e os sapatos e pilhas às bancas de dvds; casulos humanos de aparência mais ou menos lúgubre; mas de decibéis invariavelmente no limite.
Às vezes abanco numa tasca, de livro a tiracolo. E num terço das vezes a minha presença excita, a)algumas raparigas que me põem na mira de uma ufana descendência mulata, b)algum preconceito, que motiva um crescendo de piadas e de provocações ao «mulungo» (o branco), o que suporto placidamente, ora com a indiferença, ora num sorriso, alinhando até com uma piada e uma auto-derrisão que os surpreende sempre.
Ambas as situações são incómodas, não apenas porque sou bastante avesso à oportunidade política do engate (e raramente a conversa ultrapassa o cliché), como também porque para o racismo nunca estaremos verdadeiramente vacinados.
Mas no essencial é isto, o racismo fode(u) tudo, e a célebre «reconciliação» do Mandela é, meus caros, discurso para exportação e turismo.
Aqui coabitamos, apesar de, e não conjuntamente, de forma orgânica.
Desiludam-se os românticos de esquerda, em África manifesta-se a erosão mais explícita dos “amanhãs que cantam”. Para ver isso, basta não vir em férias e ter a coragem de não fazer como a maioria dos mulungos que rapidamente adoptam a postura daquele macaco do artesanato africano que não ouve, não fala e não vê.
O que me leva ao primeiro ciclo poético sério que escrevi em Maputo, em 2005, e, numa toada auto-paródica, contém já essa tensão dum espaço dilacerado e em perpétua antropofagia, PIRIPIRI SUITE.
Aqui vos deixo o poema de abertura:
PIRIPIRI SUITE
Uma homenagem a António Quadros/João Pedro Grabato Dias
Óculos raban, insinuam línguas de prata,
e voltejam máscaras, pássaros policromados,
timbilas, à cata de epicuristas binoculados
em sinas e suruma - um mundo de erratas,
o pequeno teatro que te acomoda à cafeína.
Mandrake fosses e, na prontidão inigual.
de um ademane ficariam saciados,
em cada sorriso tilintaria uma mina,
até ao Luthor emprestarias lacoste.
Mas, rapaces, confundem o dinheiro
e a melanina, não te admitem
bebedola e sem vintém, como foste
e serás - quanto muito assisado pescador
de pérolas nos baixios de dama remediada,
lida a que sem ronha nem azougue
te afeiçoas, em desatino e desprimor
do verso. Lembrar genealogia lusa e espúria
que nunca se rebelou com o chiqueiro
e que nem O Bolor de meio século
ventilou, na cadeira da injúria? P’ra quê?
Eles, rudes e confusos, estão-se nas tintas
para os fungos da memória, e trinta
anos depois de se libertarem da pilhéria
alheia abraçam, agastados, a própria.
É da natureza dos povos, o couso
da sua dependência é uso de cada um,
e o resto é a ingénua sarça
da esperança a gozar c’os moços.
O da mota de arame não debanda,
não vês tu que é uma Davindson?
Cabrão de tuga, mil vezes matreco,
alardeiam as narinas que já não comanda.
Chega agora o jornaleiro. Separa-nos
uma vidraça, ouço-lhe todavia o sangue:
estoira-lhe nas veias a pedreira,
vê-se o assanho nos braços estirados
por palavras ínvias, sem rasto de bulbul,
toneladas de iletrada treva eterna.
Defronte fica o shoping, planante
nas suas varandas em tubelagem azul,
e com o ar imponente, brunido,
de a quem miséria alheia não exaure.
Ao lado, numa vivenda baixa, colonial,
que as acácias e um muro carcomido
isolam, um dos grandes arquitectos
africanos, desenha a casa de reforma
de Kofi Annan. Ah, a arte aos eminentes!
E bolsa-me instantâneo o dizer predilecto
de Claes Oldenburg: “pratico a pintura
que ajuda as velhinhas a atravessar
a estrada”. Puta de boutade! O filho
do cônsul sueco, merecia conhecer, dura
entre as pernas, a paixão dos pobres.
Tu sonhas com Java, o mais misterioso
dos países, e percepções em si mesmo
não lacunares exortam-te o canto, salobre
e macio sentimento de exterioridade
que te dissipa o azar e salva da lacrimejação
dos patrícios que te rodeiam. E sempre
gostaste do caos, confias na benignidade
de uma poética do sujo, que a mais grave
miséria é espiritual (odeias-te por
dizer isto), acreditas que assobiar
é preciso quando se levanta entrave,
e aqui - restituído ao mais paisano
anonimato - redescobres a fantasia
de não teres tradições, novas sendas
para a língua, uma por outra tesão de ébano.
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