quarta-feira, 31 de agosto de 2011

GASTÃO CRUZ: OBSTINADO RIGOR


Gentilmente, ofereceram-me Os Poemas, a recolha de Gastão Cruz, onde se reúne tudo o que escreveu de 1960 a 2006.
Há dez anos que não tocava em Gastão Cruz.
Foram três horas de labaredas. Reconciliei-me com sua justa medida, o seu verso tão rente à lâmina. Tem poemas escultóricos, donde a palavra, mesma a que nomeia a água, ressalta, corpórea, tensa como a linha de nylon que encontra o que perdura.
Nem sempre o acho à mesma altura mas no seu melhor é mesmo do melhor que em Portugal se escreve.
E (digo-o à vontade porque pessoalmente não somos um exemplo de estima mútua) diante da sua expressão tão enxuta e verdadeira sinto-me um tagarela, um gaiteiro – olho as mãos e vejo-as perfurada de miragens.
Aqui vos deixo alguns poemas:



Às vezes despedimo-nos tão cedo
que nem lágrimas há que nos suportem o
peso da voz à solidão exposta
ou
de Lisboa no corpo o peso triste

Às vezes é tão cedo que nos vemos
omitidos
enquanto expõe
o peso insuportável do amor
a despedida

É tão cedo por vezes que Lisboa
estende sobre os corpos o desgosto

Com os dedos no crânio despedimo-nos


ALGUM DIA

Algum dia o teu corpo como um copo
na paisagem da mesa ficará
deitado na toalha
Chegará
alguém para levar o que estiver
a mais  Ele estará


ONTEM NA BOCA DO INFERNO

Ontem olhando o mar que penetrava
sob as escarpas num rumor difuso
de fim de primavera quando a brava
cratera do inverno esquece o uso

dado às águas, enquanto te escutava
como um vulcão de sentimento (escuso
falar-te do amor de que essa lava
de palavras mortais movia o fuso

nas nossas vidas oscilantes) vi
novamente a voragem no teu rosto
ao inferno descido. O mar em ti

reflectia-se não como o reposto
equilíbrio das águas na estação
visível mas como água da paixão


O SOL É UM COMETA

Um astro rápido atravessa a água
do céu de maio não como um destroço
das primaveras que o passado esmaga
é um leão que treme na luz de ouro

O sol é um cometa quando o vejo
com os músculos de oiro do meio-dia
dilacerar a água que o protege
tal como o corpo dilacera a vida


NA POESIA

Na poesia procuro uma casa onde o eco
existe sem o grito que todavia o gera


SENTIMENTO FIXO

2
Preciso que me impeças
de perder-me
ainda que perder-te seja a dor
de que preciso

Na manhã parada
do outro lado da janela está
o nosso tempo
erva cortada
   

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