sábado, 27 de agosto de 2011

CORTÁZAR: AS ARMAS SECRETAS



Julio Cortázar é - com Sabato - o meu argentino. Um dos meus amores mais danados. A Cortázar ninguém o dá como poeta. E a sua obra neste género é curta, em proporção com a prosa – onde foi genial. E Cortázar sofria porque esta sua vertente era depreciada por críticos e amigos, sempre apressados a fazer comparações e desconfiados, eternamente desconfiados, diante de quem se marimba para os géneros, ou em todos habita. Também eu sei, diariamente, o que é visitarem-me o blogue e depois virem bater-me nas costas com uma ressalva: você como cronista é assim e assado, como poeta é que deixa muito a desejar, ou ao contrário, da sua poesia gosto, da prosa é muita verborreia e etc., numa desencontrada praça de opiniões que me deixaria tolhido se eu não seguisse cegamente o conselho de Ezra Pound: «não ligar a nenhuma opinião que não seja a de quem tenha escrito, de facto, algo de notável». Ora Cortázar era poeta, e excelente, não é Lezama Lima, mas quantos são?, e Cortázar, que não seria o narrador que é sem este lastro poético,  versejava como quem não quer a coisa e está em conversa com um amigo, num rigor que faz da presença e da partilha intensidades maiores.
É um homem sábio, à conversa, e isso nos basta.
Aqui vos deixo um primeiro lamiré, três poemas de amor.   


OUTROS CINCO POEMAS PARA CRIS

1
Tudo o que precede é como os primeiros momentos
de um encontro depois de muito tempo: sorrisos, perguntas,
lentos reajustes. É estranho, pareces-me menos morena
que antes. Melhorou enfim, a tua tia-avó?
Não, não gosto de cerveja. É verdade, tinha-me esquecido.
E por baixo, ascende no monta-cargas de sombra, devagar,
outro presente. No teu cabelo começam a agitar-se as abelhas,
a tua mão roça a minha e deposita nela um doce favo
de fumo.Ja
cheira a sul.

2
Às vezes pões
uma cara de exílio,
esse que precipita uma voz nos teus poemas.

O meu exílio é menos duro,
guarnecido de defesas,
mas quando te levo pela mão
por uma ruela de Paris
queria tanto que o passeio desembocasse
numa esquina de Montevideo
ou na minha rua Correntes

sem que ninguém viesse
exigir-nos os documentos.

3
E às vezes calha acreditar que poderíamos
conciliar os contrários
entrosar-nos no centro imóvel da roda
sair do binário -
ser o vertiginoso espelho que concentra
num vértice derradeiro
esta dança cerimoniosa que dedico
à tua presente ausência.

Lembro Saint-Exupéry: “o amor
não é olhar quem se ama
mas sim olharem os dois numa mesma direcção -“

podia ele lá suspeitar que tantas vezes
os dois olhamos fascinados para uma mesma mulher
e que a sua esplêndida, feliz definição
cai de costas como uma boneca de trapos.

4
Pressinto que não te quero
que somente quero
a impossibilidade tão óbvia de querer-te,
como a mão esquerda
que fica cativa dessa luva
que vive na direita.

5
Ratito, penugem, meia-lua,
caleidoscópio, barco na garrafa,
musgo, sino, diáspora,
palingenesia, feto,

isso e o doce de abóbora,
e o acordeão de Troilo e dois ou três
zonas de pele aonde
faz ninho o alcião,

são o que contém
a tua cruel definição inalcançável
são as palavras que guardam a substância
de que estás feita
para que alguém beba
e possua e arda convencida
de que te conhece inteira,
e de que não passas da Cris.


OS AMANTES

Quem os vê andar pela cidade
se todos estão cegos?
Eles levam-se pela mão: algo fala
entre os seus dedos, línguas doces
lambem a húmida palma, correm pelas falanges,
e acima fica a noite crivada de olhos.

São os amantes, a sua ilha flutua à deriva
por entre margens de chorões, acosta em portos
que se levantam entre lençóis.
Tudo se desordena através deles,
tudo aí encontra a sua cifra escamoteada,
apesar deles nem sequer darem conta
que enquanto se engalfinham na sua amarga arena
sucede uma pausa na obra do nada,
o tigre é um jardim que lança os dados.  

Amanhece nos camiões do lixo,
começam a sair os cegos,
o ministério abre a suas portas.
O amantes rendidos olham-se, tocam-se,
uma vez mais, antes de exalarem o dia.
E estão vestidos, já se extraviam pela rua.
E é só então
quando estão mortos, quando estão vestidos,
que a cidade os recupera, hipócrita,
e lhes impõe os deveres quotidianos.

FINAL
Lucila uma vez mais o reclamo
nascido do canto trivial e da guitarra,
da dupla solidão que nos amarra,
noite após noite, num bar, e não te amo,

não é amor isto, nada mais é que o Amo
com a tua pele, a tua saliva, com a garra
que delicadamente nos desgarra
de cada vez que em teus músculos me derramo.

Dois corpos que rumorejam a sua vigília
- humilde e obstinado sentinela
do simulacro deste amor jazente -

e em amarga sujeição se reconciliam,
na equinocial sombra que te modela,
com a esvanecida aura do ocidente.

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