sábado, 27 de agosto de 2011

PAGAR O PREÇO


Que alavanca me pode restituir a palavra viva? Porque as palavras deslizam rapidamente para o pântano, o lugar-comum, antes de se engessarem, na casa das múmias.
Que alavanca pode restituir a palavra viva?
Nietzsche passava um serão com uns amigos. Um deles deu como fanfarronada a história de Mutius Scaevola, um jovem romano que entrou no campo inimigo do Etruscos e matou por engano o secretário do rei Porsena, em vez do próprio rei. Para se castigar do erro, Scaevola meteu a mão num braseiro.
O episódio não colhia junto dos companheiros do filósofo, incrédulos. E então Nietzsche dirigiu-se à lareira e pegou num carvão em brasa, fechando a mão sobre ele, enquanto cerrava os dentes para não deixar escapar um grito.
Esta história, já conhecia, duma biografia.
O que desconhecia era o que se sucedeu e leio agora: «Com uma destas teimosias de criança que muitas vezes constituem o instintivo esboço de uma disciplina do querer, durante anos conservou aberta a chaga», conta Élie Faure.
E percebo então que aquilo que pode parecer uma doidice, um sadomasoquismo declarado, explica alguma da aragem que se sente na leitura do filósofo de Assim Falava Zaratrusta.
Em presença da dor cada palavra é mais viva, porque arrancada a uma intensidade sensorial que, para ser apaziguada, obriga a uma paralela exactidão expressiva. Claro que ninguém se livra da dor duma queimadura recitando um soneto de Shakespeare, porém a pouca disposição para jogos de linguagem que assiste a quem sofre a dor, obriga a soltar o verbo numa única oportunidade, certeira como a pincelada num fresco. Não há retoques diante da dor, embora a palavra certa não a faça esquecer talvez a sublime. Como a pintura ajudou Frida Khalo a suportar estoicamente o desconjuntamento da sua coluna vertebral.
Nietzche usava a chaga sempre aberta como uma disciplina, um enxerto de tragédia na carne, e quando falava na dor, ou na alegria, no apaziguamento ou na revolta, era sentido. Ninguém discorda de nada com uma dor enfiada na carne se não discordar de todo; ninguém se diz eufórico, com uma dor entalada na carne, se tal não for verdadeiro.
Mais tarde Nietzsche, formulará que «a doença é um ponto de vista sobre a saúde», que é já uma forma de distanciamento sobre o sensível, e que há-de ter treinado na longa duração deste episódio.
Escrevo isto e ouço a Luna, que tem sete anos, lá dentro a reclamar com o gato, porque, diz, «o Sebastião é um lambareiro…» (roubou-lhe uma salsicha). Gosto que ela tenha achado uma forma mais viva e expressiva de acusar o gato sem ter caído nas fórmulas simples mas gastas de «comilão», ou «guloso». Mas quanto tempo lhe durará esta descoberta das palavras antes de se enfronhar nas fórmulas?
Por que o problema é este: não estamos dispostos (como o Nietzsche) a pagar o preço. 

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