sexta-feira, 19 de agosto de 2011

EDOARDO SANGUINETI: ENTRE PARENTESIS



Catando no my documents - pois sou daquela criaturas insuportáveis que nunca apaga nada e que de tempos a tempos depara com coisas que havia esquecido de todo – achei estas traduções de Edoardo Sanguineti, um poeta italiano de que gosto muito.
Aqui as deixo – e gostaria muito de saber quando se reunirão num volume todas as traduções de Egito Gonçalves, muitas das quais permanecem inéditas, como uma que me ele me deu do mais brilhante poema longo de Vladimir Holan, Uma Noite com Hamlet. 
Aos poemas e à entrada, devo tê-los tirado de qualquer blog, mas não me lembro de todo, pelo que não posso assinalar a precedência.

EDOARDO SANGUINETI, poeta, romancista, dramaturgo e ensaista italiano, nasceu em Génova em 1930.
Segundo Egito Gonçalves, “na sua pena tudo parece ser experiência, análise, intuição, dissecação meticulosa e fria; linguagem estridente e provocadora, ácida, difusa e confusa, corrosiva, por vezes grotesca, itinerário autobiográfico; comenta os acontecimentos do mundo que o cerca enovelados no banal quotidiano, parecendo no entanto, frequentemente, puro jogo linguístico.
Os quatro poemas que se seguem - e que trazem à memória a poesia de Frank O'Hara, - foram traduzidos por Egito Gonçalves e publicados na revista LIMIAR, n.º2, de 1993. Com a necessária vénia:
1
com um polvo que obriga a quatro horas de cozedura (o peixeiro não o bateu
convenientemente), muda-se uma refeição completamente: tenho a receita de uma maionese
provençal, mas contaminada com alho):
quanto às manchas simétricas dos frutos
desaparecem como se nada fosse, quase, realmente, se os esfrego com força,
apenas, com uma luva de espuma macia, molhada em água quente, e se Sylvie me passa a ferro
as calças para as secar:
sei bem que estou muito apresentável, eu, mesmo se
me apresento em slip de algodão: (mas falemos agora um pouco de Gramsci, que é melhor,
e da revolução cultural italiana):
(e cada palavra que diremos será gravada em fita):

2
falemos, por favor, dos prazeres da vida, por uma vez (disse eu
à mulher de Van Rossum, na segunda-feira às 11 horas): (que é alemã de Munique,
realmente, com menos de 30 anos, creio, branca de pele como clara de ovo): e o primeiro
prazer é o de penetrar, evidentemente: e depois, para mim, dormir ao sol (como dormia agora,
disse eu, antes de ela chegar: torso nu como podia ver, e pés
descalços, etc.): e o terceiro é beber vinho (francês, se possível, como aquele
que bebemos no sábado com Berio, e também na sexta-feira em Roterdão e aqui):
(e concluí que o paraíso será penetrar ao sol, talvez encharcados de Saint-Emilion):

3
Ensinei aos meus filhos que o pai foi um homem extraordinário: (poderão
contá-lo assim a qualquer um, um dia, se o quiserem): e depois que todos
os homens são extraordinários:
e que de um homem sobrevivem, não sei,
pelo menos umas dez frases, talvez (juntando tudo: os tiques,
os ditos memoráveis, os lapsos):
e isso nos casos afortunados:

4
um húngaro de nariz torto (excelente poeta, segundo parece) interrogou-me
no meio da noite, em plena Terrazije, dizendo: como fizeste, tu, para não ter
enlouquecido? (porque dizia que eu tenho todo o ar de um Artaud): e eu respondi, então:
mas as mulheres ajudam-nos um pouco:
estava de acordo (embora tenha logo precisado
que tinha sido homossexual, e que agora não praticava nada):
(ajudam-nos com a sua loucura,
precisamente, se aquela espécie de reedição descoberta por uma Elisa tinha razão,
lá em cima, no gabinete de Politika, ela que me tinha deixado dizendo: diverte-te e ama):

POSTKARTEN


1
tudo começou com uma estúpida história de sobretudos trocados
no restaurante Rosetta:  (e com aquela tua correria cega, a passares pelos balcões
da Alitália, distraída, abstraída):
                                          ei, não vejo onde está a graça, cara amiga,
o que eu acho é que, então, ali no bar do Amor, se perdemos com tanta facilidade
a nossa identidade, as roupas, os sinais particulares, os pontos
de referência, a orientação, o bom senso:
                                         (perdemo-nos outra vez
no mundo, como se pode:  e como se merece):  (e se te escrevo do aeroporto
de Capodichino, à partida para Amsterdão, nos voos AZ 424  e  AZ 382
é mesmo por pura superstição, afinal:  e não por outra coisa, a sério, por mais nada):

3
                                                 a cena é em Dronten,
 mais precisamente no Meerpaal, onde cacarejam saltitantes, gordas waterhoentjes,
                                                                      às vezes, acredita, pergunto-me
  o que ando a fazer, eu, aqui:  peço-te que respondas por mim:  (é urgente):

10
          a leitura passa-se
no Paris Bar, ainda, a propósito, na presença de um austríaco,
                                                                 de uma sopa de cebola, de um bife em sangue:

nego-me a discutíveis
golpes baixos, não dou importância à questão de uma suspeita bigamia, refaço o traço de uma cruz
já desenhada  (o que significa que fiz coisas que viverão depois de mim, talvez):
e concluo que me basta um destino de 5 ou 6 centímetros (e já é muito):

tradução de Tereza Bento (feita por ocasião do concerto Stefano Scodanibbio/Edoardo Sanguineti promovido pelos Artistas Unidos no Teatro Taborda, em Lisboa, em 27 de Fevereiro 2004)

O PURGATÓRIO DO INFERNO
este é o gato de botas, esta é a Paz de Barcelona
entre Carlos V e Clemente VII, é a locomotiva, é o pessegueiro
florido, o cavalo marinho: mas se virar a página, Alessandro,
vai ver ali o dinheiro:
         estes são os satélites de Júpiter, esta é a Rodovia do Sol, é a lousa quadriculada, é o primeiro volume do Poetae Latini Aevi Carolini, são os sapatos, são as mentiras, é a Escola de Atenas, é a manteiga, é um cartão-postal que chegou hoje da Finlândia, é o músculo mandibular, é o porto: mas se virar a página, Alessandro, vai ver ali o dinheiro:
         e este é o dinheiro.
         e estes são os generais com as metralhadoras deles, e tem os cemitérios com as tumbas, e tem as agências bancárias com os cofres-fortes, e tem os livros de história com as histórias deles:
         mas se virar a página, Alessandro, não vai conseguir ver nada.

Poesia traduzida por Julio Cesar Monteiro Martins, Pisa, dezembro de 2006



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