segunda-feira, 18 de julho de 2011

Que pode a literatura?


Pergunta-me o Nazir: que pode a literatura?
E eu diria que a literatura tem ainda um papel social nesta época, que é simultaneamente a mais rica e a mais perigosa. Ideologicamente, acabaram-se os modelos pronto-a-vestir e o homem ou cresce reinventando a vida, os valores e o amor, ou avilta-se.
Vivemos uma espécie de «choriro», o período que em África designa o interregno entre a morte de um rei e a coroação de outro, quando tudo é permitido e se instala um estado de excepção que turva as águas. Talvez nos tenha calhado viver um período idêntico ao que segundo a Yourcenar caracterizava o tempo de Adriano, quando haviam fenecido os deuses antigos e os novos deuses ainda não tinham despontado.
É um momento ímpar, de grande liberdade e de grande informação, mas que já não admite nem preconceitos nem álibis, e em que, mercê de alguma coragem, cada um pode chegar sem intermediários aquilo que é.
Tem um lado negro, esta ambivalência: um biltre pode chegar mais facilmente aquilo que é e os biltres são como os chineses, não param de nascer.
Quero contar ao Nazir uma história que vivi, para elucidar o que poderá ou não a literatura.
Rimbaud acreditava piamente que, na Etiópia, poderia “desaparecer sem que a notícia jamais se divulgasse”, segundo a carta que envia de Harar, a 6 de Maio de 1883.
Não obstante, um século depois, em Outubro de 1997, em Addis Abebe, capital da Etiópia, um jovem de fala doce e dedos que pretendiam harpejar mel (estão a ver o excesso de sacarose!?), numa pastelaria sórdida nas imediações do meu hotel, desdobrou-se em argumentos para me vender dois produtos: moedas do século XIX, e manuscritos de «Rambo» - Rimbaud actualizado pelas peripécias de Sylvester Stallone.
Levou mais de meia-hora a montar as provas da sua intocável honestidade, o intuito era salvar os manuscritos de mãos gananciosas e devolvê-los à glória de França. Eu, no dizer do magano (- hélas, teve o flash assim que me viu franquear a porta!), seria o portador ideal.
O Rimbaud não desapareceu, mudou unicamente em Rambo, em mercadoria de contrabando, na mais rotunda conformidade com aquilo em que se tornou. Por outro lado, digo eu, Rimbaud não se repete, está sempre em movimento, tanto na sua etapa europeia, como na posterior e derradeira. E talvez o escândalo do segundo Rimbaud se atenue se considerarmos que o jovem bardo queimou todas as etapas rapidamente e cedo embateu na aporia de Wittgenstein: do que não podemos falar devemos calar. Aporia que Wittgenstein viria a superar.
O erro de Rimbaud foi considerar que as energias condensadas no silêncio o catapultariam ao limiar duma indivisibilidade permanente que supriria os “degraus subidos”; do que decorre que não se sinta, nas suas cartas da Etiópia, que o fazer iniciático da obra se haja afinal convertido num poder de auto-transformação. É escusado procurar neste Rimbaud (nas suas cartas) qualquer traço de “um iluminado”, como se as suas informações chãs sobre dinheiro, mercadoria, ou armas fossem um código cifrado e não, ao invés, o despacho trivial de um inábil contrabandista de armas, suspeito além disso de contrabandear escravos.
Falei atrás em degraus subidos. De onde para onde? O itinerário duma auto-gnose é sempre (e ria-se quem puder) uma escada para baixo e para o alto que se sobe para dentro, porque lembra uma carta geográfica desenhada por Esher. E aí, como também as escadas de Escher, aquelas não têm fim, e facilmente cospem o iludido para «o fora«. A Rimbaud perdeu-o a soberba, e a pressa, que lhe implodiu no cerne o prisma que a dado momento fora a chave para um tempo próprio e uma visão tão inextricável como barbaramente sua.
Rimbaud foi o primeiro desses heróicos ejaculadores prematuros que o cinema, numa aceleração incurável onde se fundem ainda o romantismo e o clamor das imagens, instaurou como ídolos.
Verlaine regista na sua biografia de Rimbaud: “ele anda agora pelos trinta e dois e viaja pela Ásia onde se ocupa de trabalhos de arte”. Para Verlaine, mais literato que Rimbaud e um ingénuo até à medula, é impensável a natureza dos negócios a que se entregou o seu antigo amigo e amante e que a demanda da “verdadeira vida” proclamada em «Une Saison…» não passe de uma bravata.
Embora, no fundo, a ingenuidade de Verlaine, apenas confirme o diagnóstico de Alain Borer: «não há “o impensado”: só o invivido».
Precisemos o que está em jogo, socorrendo-nos de novo de Alain Borer: se vida e obra estão «intimamente, não se pode dizer melhor, ligadas», então estamos lixados e ler Rimbaud é assistir ao «fracasso da transformação do real pelo poeta que se reconhecera como o eleito dessa missão. Não passraá de confusão a “desaparição elocutória” de Mallarmé e o “Eu é um outro” de Rimbaud?». E então aqui talvez o Herberto tenha razão: o segundo Rimbaud anula o primeiro “cancela as iluminações ou as épocas no inferno (tanto faz) como um «erro»”.
O que aqui se anuncia é demasiado grave para ser ocultado.
Contudo, o descalabro do segundo Rimbaud coloca-nos de sobreaviso e faz-nos compreender que a suceder-se uma, muito nietzschiana, Aurora (um novo ponto de mira que transforme a vida), ela terá de ser consecutiva, isto é, a mesma não autoriza o relaxe e a auto-complacência. Daí que o cínico Diógenes andasse pelas ruas, em pleno dia, de lampião aceso, à procura do homem: desenhava no solo a sua própria sombra.
A Aurora, para sê-lo, tem de ser consecutiva, ainda que pareça similar aos olhos do distraído, de modo a conseguirmos mudar ao mesmo ritmo em que mudam as condições do acontecimento.
O fracasso de Rimbaud é o que nos dá o recuo e dilui as cartilagens da crença que invariavelmente nos secunda quando somos mobilizados para um encontro com «o real». Não é possível mergulhar em Rimbaud e ficar-se inocente, ainda que a emulação seja a experiência que cabe a cada um empreender sozinho, em risco. A dele foi a que cumpriu na Etiópia, num curto-circuito com o seu passado.
A erupção mística é uma ilusão dos literatos: Rimbaud deve ser lido o mais precocemente possível não porque alargue o âmbito literário mas porque nos faz penetrar noutro real, material, que nos desfaz as ilusões. Somos barbaramente devastados pelos sinos que a sua leitura nos deposita nas veias e isso vale para o bem e para o mal. O horizonte incondicionado que, à sua leitura, se alastra na nossa sensibilidade como um novo afecto (o que nos faz bem) é um ovo para o devir mas arrasta consigo e inevitavelmente as máscaras do mal.
Lê-lo permite-nos compreender melhor os labirintos do mal e as opções que validam a decisão de uma escolha. Ler Rimbaud, como Thomas Bernhard. como Bobin dá-nos defesas.
Se eu não tivesse lido Rimbaud teria caído facilmente na conversa do jovem vigarista etíope, que era veterano e experimentado no ardil, enquanto eu era um iniciado como incauto. Mas os sopapos de Rimbaud puseram-me a pau, sepultaram de antemão as ilusões sobre uma tão magnífica coincidência.
A (alguma) literatura desmascara os prestidigitadores, e, embora abra o campo das virtualidades, desmascara as mentiras, a desonestidade. Claro que esta é uma aprendizagem no tempo, pois a literatura é, paradoxalmente, o maior propulsionador imóvel que se conhece. E a sabedoria trágica que nos traz é sem retorno.
Portanto a questão, meu caro Nazir, não é sobre o que pode ou não a literatura, mas antes:
- de que têm medo “os agentes culturais” e os responsáveis políticos dos países párias para se afadigarem tanto a impedir que os seus cidadãos tenham acesso e, afinal, se alienem com a literatura?
- de que têm tanto medo os mercados nos países ricos a ponto de, mesmo tendo acabado os pronto a vestir ideológicos,  procurarem uniformizar, com critérios e normas editoriais imbecis, todo o trabalho criativo?

3 comentários:

  1. Esta pergunta, que pode a literatura, eu acho que se faz todo aquele que reconhece na literatura uma escolha vital.

    Assim, o que você diz de Rimbaud: [O horizonte incondicionado que, à sua leitura, se alastra na nossa sensibilidade como um novo afecto (o que nos faz bem) é um ovo para o devir mas arrasta consigo e inevitavelmente as máscaras do mal. Lê-lo permite-nos compreender melhor os labirintos do mal e as opções que validam a decisão de uma escolha.]

    Então, perceber os labirintos, não importa mais de que sejam, do bem ou do mal (a própria percepção do mundo como labirinto desnorteia), mas de todo modo isso que você disse sobre a injeção de signos na veia que imunizam (contra o quê?), contra as forças que fazem sucumbir, que enfraquecem, me parece responder à pergunta, "O que pode a literatura."

    Abraço.

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  2. Que nunca te doam as mãos.

    Abraço

    ab

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  3. Caro Cabrita,

    A questão tinha a ver, sim, com este duplo movimento, ligado às instituições e aos poderes, a que te referes nos dois últimos pontos. Rancière, em La Chair des mots, diz que a democracia não pode se definir simplesmente como um regime político entre outros. Ela deve definir-se mais profundamente como uma certa partilha do sensível, uma certa redistribuição dos seus lugares. O teu texto relembra que isso é possível (é a única coisa possível) e ensina o poder do texto: "a sabedoria trágica" que é "sem retorno" e que se conquista a punho; as linhas de fractura que sobem e descem, que sabem, podem e (portanto) devem conviver, combater e mesmo alimentar-se das condicionantes dessa democracia sem partilhas. Obrigado pela gentil e firme resposta. E um abraço.

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