quarta-feira, 27 de julho de 2011

“Sería feliz si yo supiera cómo”/ Rosario Castellanos



Rosario Castellanos (1925 – 1974) era uma magnífica poeta e embaixadora mexicana que um dia em Israel ao ir mudar uma lâmpada ficou electrocutada. Aqui deixo alguns poemas que traduzi para a excelente revista Magma (a nº2), dirigida pelo Carlos Alberto Machado e a Sara Santos, no Pico/Açores, e que infelizmente nunca teve a distribuição que merecia.


ORIGEM

Sobre o cadáver de uma mulher: assim cresço.
Enroscam-se nos seus ossos as minhas raízes
e do seu coração desfigurado
emerge um talo, duro e natural.
Do féretro de um menino não nascido:
do seu ventre revolvido antes da colheita
levanto-me tenaz, definitiva,
brutal como a lápide a quem a tristeza ocasionalmente
morde, como a tristeza marmórea do anjo funerário
que no bojo das mãos oculta a face sem lágrimas.


O OUTRO

Para quê nomear os deuses, os astros,
a espuma de um oceano ignoto
e o pólen dos jardins mais remotos?
Se nos dói a vida, se cada dia que acosta
desgarra uma entranha, se cai a noite
e cai convulsa, delapidada!
Se nos dói a dor em alguém, num homem
que nunca conhecemos mas intrínseco
assiste a todas as horas e é a vítima
e o inimigo e o amor e tudo
o que nos falta para sermos inteiros!
Nunca digas “é minha a treva!”,
A tua alegria não se sorve num ápice!
Olha como à volta há outro, há sempre outro.
O que ele respira é o que a ti te asfixia,
o que ele come é a tua fome.
Morre com a metade mais pura da tua morte.


DESTINO

Matamos o que amamos. O mais
nunca esteve vivo – nunca.
Nem um só, assim perto. A nenhum outro fere
um esquecimento, uma ausência, às vezes menos.
Matamos o que amamos. Que cesse de imediato esta asfixia
de respirar por pulmão alheio.
O ar é  lá bastante
para os dois! Não basta a terra
para os corpos juntos,
parca porra parca a ração da esperança,
tão parca como a dor de partilhar.

O homem é animal de solidões,
cervo com uma flecha no flanco
que foge e se dessangra.

Ah, mas o ódio, a sua ferida insone
de pupilas em vidro; a sua postura,
em torno, repouso e ameaça.

O cervo vai a beber e na água aparece
o reflexo de um tigre:
o cervo bebe a água e a imagem. E torna-se
- antes que o devorem (cúmplice, fascinado) –
igual ao seu inimigo.
Só damos vida ao que odiamos.



ADVERTÊNCIA AO QUE CHEGA

Não me toques o braço esquerdo. Dói
de tanta cicatriz.
Dizem que foi da tenção de matar-me,
eu que mais não queria senão dormir,
profunda, amplamente, como dorme
a mulher que é feliz.

2 comentários:

  1. Impressionante intensidade! Matamos o que amamos. Matamos o que encontramos. Menos as palavras, que elas sobrevivem as nossas maldades.
    beijo

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  2. Olá António
    Que bom reencontrar-te.
    E de novo comover-me com esses poetas que só tu descobres.
    Fazes-nos falta.

    Joana Emídio Marques
    Vasco Luís Curado

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