Como todos os jovens da minha geração desejei ser Jim Morrison, Lou Reed ou Iggy Pop.
Depois a vida apresentou-me outras sensibilidades musicais e no dizer do Faustino, um amigo de infância, fui-me tornando, em matéria de gosto musical, um aristocrata de merda.
E passei a tolerar a pop, o rock, hip-pops e derivados, nos elevadores, táxis, centros comerciais e aeroportos, e a encarar a maior parte das suas manifestações como uma espécie de chuva-ácida, emanada por quem odeia o silêncio e adora infestar o ambiente com sons industriais.
Adoro um poema de Vasco Graça Moura em que ele conta com muita graça o que lhe aconteceu dentro de um carro quando teve de confessar à senhora (mais nova) que o conduzia que não sabia quem era o Mick Jagger. E acho patético que o Mick Jagger depois de ter jurado aos 35 que não se via aos 45 a cantar o I Can Get No Satisfaction, o tenha de fazer aos 60 por estar prisioneiro da sua imagem.
Na generalidade, de facto, gosto mais de música instrumental, mas se calhar é uma snobeira – a que me foi consentida.
Contudo, é evidente que se viajo e compro música para a minha filha adolescente tenho de respeitar os gostos dela ou de fazer sugestões, por palpite, que me pareçam consentâneas.
Há 3 anos, sem grande conhecimento de causa, levado pelo faro e pelo teledisco da canção Rehab comprei-lhe Amy Winehouse.
Nunca prestei muita atenção quando a Ana punha o Cd no seu quarto, embora às vezes me agradassem certos momentos, uma entoação de voz, a garra da cantora, sempre no limite da electrocussão. E claro que os noticiários me mantinham informado sobre a irreverência e as desintoxicações e recaída da cantora.
Tanta conversa para contar que esta semana calhou que uma amiga tenha vindo cá a casa com o seu computas e fizemos umas trocas musicais, eu gravei o que ela tinha no disco rígido e vice-versa. E entre as muitas coisas giras e novas que transferi estavam os dois discos da Amy Winehouse. Como ela havia morrido, nas circunstâncias que se sabe, decidi-me a ouvir um disco dela do princípio ao fim, e escolhi Frank, o álbum de estreia, de que julgava não conhecer nada.
Surpreendeu-me de imediato a sobriedade da canção de abertura, (There is) No Greate Lover, a voz no pique e a qualidade dos arranjos. Depois a abertura de Amy Amy Amy-Outro, arrebatou-me, e o seu desenvolvimento deixou-me atónito. E por aí fora num desfile de canções que preferem sempre a subtileza a encher de efeitos a textura musical; e onde sobressai um diálogo notável entre a voz e os arranjos, estupendos – veja-se a maneira como ela usa os metais, nunca são adornos (ou airbaigs) para a voz mas algo que lhe enriquece a expressão e nunca abafam o silêncio que está para além do seu recorte. Estas canções não cedem à facilidade e ao sucesso e obrigam-nos a escutar, a suspender por um momento o que estávamos a fazer para lhes prestar atenção, porque sendo simples são complexas, e não como grande parte da pop de hoje, redutoras. E Amy aprendeu tudo com as grandes cantoras de jazz: ouça-se o espantoso Moody’s Mood for Love.
Mesmo nas canções que gosto menos, como In My Bed, que roça a canção chula, de repente um solo de flauta, repõe a invenção no seu lugar devido, e catapulta um balanço inesperado.
A haver alma ela encharcava a voz, o corpo, a mente e a criatividade de Amy Whinehouse e se ficamos com a sensação de que morreu antes de tempo, pelo menos ardeu no tempo exacto para nos deixar um punhado de excelentes canções antes de – como em Mick Jagger - até a sua cinza ser caricatural.
Olha miúda, mesmo com gota, fizeste-me abrir uma garrafa de Esporão (- It’s a very good wine!).
Saúde,
cumprimentos meus aos cães do Inferno,
e aqui deixo um poema para ti:
SAUDADES DE WILLIAM BLAKE
«Em tempo de infâmia, com licença digital e emitida
por satélite, convém supor a quem nos dirigirmos,
quem pesará a alma no dia do trespasse.
Quem profere as palavras e alivia de grumos
a matéria subtil – moinhas, pruridos, segredos
que as unhas estriam, moradas duma razão insulsa?
Em tempo de infâmia, crivados os poetas do sono
de Newton, débeis rimas infiltradas de neuroses:
spleens cozinhados aos balcões das tabernas,
enquanto, coalhos e sórdidos, como frades,
se entredevoram em litanias urbanas, tomando o solar
da pele por contemplação do mundo e as insónias por visão,
quem pesará a alma no dia do trespasse?
Em tempo de infâmia, baldado o ouro verde, lascado
como cedro podre o homem em quem a mente
se confunde com o crânio, sem atentar que o corpo
é unicamente a luva que um dia ouve tocar a banda e vai
à varanda deitar adivinhas, pôr a língua de fora e perdulário expor
o intrínseco ao vento, quem perfura o ecrã das imagens
dominantes e sai do amorfo para evocar Toth,
o único que no lodaçal dos pratos resgata o anel? »
– Tanto lhe quis dizer antes de interpor-se o mistério
da sua carne, e fesceninos, esfacelados os olhos
em tanta água, desatarmos a foder como coelhos bravos.
Bravíssimo!
ResponderEliminarExacto!
ResponderEliminarverdadeiro
ResponderEliminarAfinal há esperança que não desabes sob uma pilha de compêndios de poesia dos Balcãs. A Amy era muita boa. Ainda bem que lhe deste a benesse de uma audição mais atenta.
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