sexta-feira, 22 de julho de 2011

CLARABÓIAS, O TINOCO, A MORTE À SOLTA

Obra de francisco bronze, um amigo comum

Cansaço. Sempre que me descubro com os músculos retesados de cansaço, ou frouxos, a cair como muco líquido dum nariz pingão, pego num livro de poesia e faço os trabalhos de espaldar.
Cansaço de não dormir o suficiente, de estar sujeito a fazer coisas que detesto, ou da morte dum amigo. Esta invasão do aleatório na vida é o que mais me cansa, mais que ter que rever um compêndio de leis de 500 páginas, o que às vezes me calha no goto, e me deixa capaz de pontapear todas as clarabóias do mundo.
Enfim, parvoíces.
Mas o cansaço de ver que ao meu lado um amigo perdeu o caminho dos dedos e emprestou o coração a algum deus vagabundo cai-me sobre o corpo como a cal.
Desta vez, dizem-me, tenho de confirmar, tão incrédulo ainda estou, foi o Alfredo Tinoco. Um calmeirão barbudo de ar mongol, voz grossa, bigodes levemente à Dali e riso espontâneo, altissonante; e com mãos de andebolista que algures trocara os petardos daquela bola rija como cornos pela borboleta do badminton.
Tinha várias paixões, todas convergiam nos livros.
Aprendi com ele a andar ajoujado de livros, permanentemente, e a ler em qualquer canto, da cabine telefónica, aos transportes e às tabernas mais rudes. Aprendi com ele a amar as palavras e a fechar os livros quando algum amigo chegava para tramar o riso.
Aprendi com ele que as coisas diferentes nos nutrem mais que as semelhantes.
Aprendi com ele a admirar, qualidade que é de poucos. Ele admirava o Sena, o Grabato, o Camilo…
Aprendi com ele que a amizade é um modo de nos reencontramos dois anos depois, como se nos tivéssemos acabado de ver na véspera, com a confiança sempre à frente dos bois.
Apesar dele ser cerca de dez anos mais velho que eu, eu pensava que ele estaria lá sempre, que em voltando para Portugal ele seria um dos velhos gaiteiros com quem ensaiaria diariamente os últimos acordes na gaita. Fintou-me. Que cansaço. 
Agarrei no primeiro livro, tacteando, sem querer saber o que pegava. Calhou-me um volume com a poesia do Malcolm Lowry. Abro ao acaso e leio:
«Pensamentos de ferro navegam ao entardecer em barcos de ferro».
Não preciso de ler mais, esta imagem extraordinária basta-me. Sei que ele gostaria, desta simbiose entre o pensamento e os navios, e da vulnerabilidade da palavra reabilitada pela resistência do minério; apesar do desassossego de nos outrarmos nas coisas que de nós se afastam.
Sei que comungaríamos este verso, por uma fria manhã de Fevereiro, no café Tropical, antes de passarmos aos sucessos de Fábio Coentrão no Real Madrid, ou dele me contar um conto de Cortázar lido nessa noite, e de convidar a descer com ele a uma qualquer mina que estivesse a transformar em museu.
Sei que o Malcolm Lowry escreveu este verso para ele, é a nossa ultima libação.

Confirma se, esta na net. Soube o com um ano de atraso, ninguem teve  a gentileza de me informar. Roubei este texto do blog «A Douta Ignorância»:                                                                                 


Um bom professor vale anos de estudo de manuais obsoletos, compensa o convívio forçado com patetas incuráveis, justifica o tempo perdido em transportes para se chegar à faculdade. O bom professor é aquele que nos ensina o que só ele nos pode ensinar. O bom professor é aquele que, durante uma aula de História numa secundária dos subúrbios, discute Ian McEwan connosco. O bom professor é aquele que nos leva até Borges e, com toda a generosidade do mundo, nos empresta uma edição de Ficções. O bom professor é aquele que, a pretexto de uma matéria qualquer, nos convida para ver Ondas de Paixão. O bom professor é aquele que, no meio da estupidez geral de uma turma do nono ano, tem a coragem de se dizer fã de Debussy. O bom professor é aquele que sai do caminho estreito dos programas e partilha com os alunos um pouco do seu mundo, da sua experiência, do seu conhecimento, da sua perplexidade perante a vida. Alfredo Tinoco foi um desses professores. Recordo pouco das aulas dele, qualquer coisa sobre Museologia, mas não esqueço aquela tarde numa esplanada de Entrecampos em que afirmou, com um sorriso gaiato e a voz rouca de gigante, que era anarquista e que, por isso, não se dava ao trabalho de votar. Proclamou, ufano, a aversão ao bicho automóvel e confessou que não tinha carta de condução e que, mesmo a trabalhar no estrangeiro, encontrara sempre uma solução para esse problema que, na nossa época, equivale a uma deficiência. Esta simples lição sobre diferença ensinou-me mais do que todas as aulas sobre eco-museus e patrimónios. Infelizmente, não vou a tempo de lhe agradecer essa dádiva, porque o Professor Alfredo Tinoco, mestre gentil e grave, morreu esta semana. A generosidade, da qual fomos felizes beneficiários naquele fim de tarde, permanece comigo. 
Bruno Vieira Amaral e Henrique Raposo

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