Lá vou eu pôr um post longo, o que o leitor de blogues não gosta… mas estou-me nas tintas, não é? Porque vos quero contar que há vezes em que um poema sai redondo e nele coincide o que gostaríamos de dizer e o gume afiado a que a escritura nos impele. Sulcos raros que resumem o acto e o encarnam, actualizando uma memória que está para além de nós e que condensa (personifica?) num ápice anos de busca.
É o que me aconteceu com «A Fadiga de Ser», um poema que na primeira demão se me verteu em tercetos, numa série que se chamava «O Que Sobrou Ao Fim do Mundo» e que ficou em embrião. O poema hibernou algum tempo, esquecido, anónimo. O mês passado catei-o do my documents, abri-o intrigado, pois tinha-o esquecido de todo, mudei-lhe a forma e o ritmo, e alterei-lhe três palavras, e de repente vejo-o, nítido e final.
Eu, como uma multidão de cometas que anda por aí, durante metade da vida persegui o luxo da metáfora, a imagem repleta de dedais de ouro. Levei anos demais anos até descer à réstia humana, ao sabor do osso.
Suponho que a minha descida em África, onde afinal, ao contrário do que se julga, a grande experiência não é a exuberância mas a erosão, foi nisso determinante.
O meu último poema no meu estilo antigo foi o poema longo «Quíron, um recomeço», que fechava o meu livro «Piripiri Suite», que introduzia a minha mudança de rumos.
De certa forma, fiz um bocado de batota ao colocá-lo no fim desse livro, pois era anterior ao resto do livro, prosaico, diarístico, narrativo, saído de improviso, num jacto; não tendo, como «Quiron», a mesma carga conceptual e metafórica.
Leiam-se os três primeiros andamentos de «Quiron»:
«1
Naquele seixo que o leito do rio
aguça,
cisma o informe
ou a eternidade?
Alastra o seu furo diminuto,
lavrando na água os dentes
da labareda
que lucila um instante
no absorto olhar de Deus?
Corre por que luxo? Denunciar as fontes,
pela vã espessura de um cabelo,
desafinar o equânime?
Ou, pedra inaparente,
coágulo disposto a não ser poupado
no acelerador de partículas,
almeja a unha negra,
a dignidade:
esse ponto de giz
que assinala a estrela já morta
na constelação de Centaurus?
A meio do caminho,
um potro pisava a poldra a meio
da torrente,
e looping, ao leito,
um seixo invadiu o écran
em saltos diminutos.
Cá fora, a curva da estrada
e, mais que um prodígio,
o farolim
que varre
palavras da cabeça aos pés,
palavras iletradas como chumbo
que localizam o batel
três naufrágios acima,
o farolim que embutiu
na retina
essa sílaba pétrea
onde o homem colidiu
com a espera,
elucida:
a maçã adoça a manhã,
se o passado não vier à socapa
malferir o arco do olhar –
assim a pedra
desapossada de si mesmo
p’lo fluxo de água
num eterno recomeço será pedra
no fundo do mar –
só quem as observa em movimento
distinto do seu ser
as designa pelos múltiplos nomes
de um mesmo princípio:
o encontro de dois inteiros
combate a ilusão.
2
Era mais viva a torrente
quando o tempo voltejava
ao Deus dará,
antes de espetar no pé
o primeiro prego? Eram
mais vivas as torrentes,
mais púrpuras as uvas
antes desse instante dactilografar
o fogo
nos papiros da memória?
O que na transparência
deste rio empurra trutas
contra o frémito das nascentes,
a força intratável
que afoga gerações, devorando
ranúnculos, folhas de loureiro, libélulas,
e enferruja anzóis
ainda permite a visão fugaz:
um seixo tropeça no leito.
Move-o a insensatez
de querer retardar o fluxo,
o pendor da fonte
para a embocadura
do mar?
Flanava a ensimesmada criatura
na margem do rio
e eis que a pedra,
solta no seu eixo,
extrai-lhe
do núcleo algo de ferida,
galvaniza-a:
a espora e a carícia
da dor são vitais,
pois só pelo atrito duramos.
Alastrando o seu furo diminuto
pelo leito, o seixo
incuba
um instante no absorto olhar de Deus.
Só esse encontro de dois inteiros
combate a ilusão.
3
O vento aparta as mãos dos olhos.
Só o vento nos desvencilha do perdão
e aparta as mãos dos olhos.
( O vento:
regresso ao tema para dessedentar
os albatrozes
salvos
à calcinação dum século.)
Uma vida a distinguir
o que nos cabe
do que foi devolvido
numa corrente de ar:
e uma incisão basta,
ou um bur aco minúsculo num corredio
extenso de águas límpidas,
a oportunidade
acha uma mira.
Pode levar meses
a vir à tona –
e há que aguardar com o desgarro
das aves,
o saque e a cutícula dos instantes,
há que aguardar
que se desacostume a dor
que embarga
num calendário
a fusão dos icebergs.
Soubéssemos como percute
a cabeça
que uma palavra exorbitou
e adivinharíamos
o entalhe –
quem se anuncia
na pedra rolante que sugere um casco.
Por isso se articulas:
«Deus»
capacita-te –
é palavra tão negra que a lona do dia
lhe nega guarida. E depende do nosso risco
Ser quem era,
do nosso riso abstrair de Si
a sombra que devora.
Um ocelo turvado
e a visão de Deus
entope,
ou refaz os cálculos,
consumido pelo latejar dos rins
quando expulsa o calhau
para a foz.
Um deus compassivo
só depois de ensinado –
eis a lição d’
Aquele que resignou da eternidade
em sabendo o que dividia a dor.
Há quanto tempo não neva?
É preciso que a terra consinta.
Só o encontro de dois inteiros
desfaz a ilusão.»
Compare-se o que se leu com estes três do mesmo livro:
«ROSAS COM ESPINHOS
O que invejo nos sages é o que não gosto
na sua literatura. Falta-lhes em Susto & Cólera
o que sobra em Graça, como se abstraídos
do adocicado com que o morto ao segundo
dia empesta o ar. Sou um compulsivo
leitor de sages mas sei que no último fôlego
o ouriço sonda o que há de macio no traseiro
do invisível e o fogo se atiça com a água.
Abro a boca e logo um sage se senta
ao colo de uma sílaba, é imediato, tenho
a boca cheia de santos, ainda que a afro-
-china que acabou de passar é que
me levasse ao engano. Contradições,
arestas, obstáculos, situações: o sal
da poesia, ainda que pareça impertur-
bável a sua líquida transparência. Mas,
o gume da luz naquela face engoliria tudo.
Do pouco que estimo em Bukovski
adoro este verso, «Nasci para roubar rosas
nas avenidas da morte». Rosas com espinho.
VISIONS DE L’AMEN
Nos espigões da grade, de um esmeralda retumbante,
o pássaro. Outro, anicha-se no espigão de baixo,
um terceiro empoleira-se no de cima. Lembram notas
numa pauta, apesar dos bicos estarem lacrados.
É da chuva, uma cortina que não tem a leveza
das palavras ditas à mesa de jantar e cai como um cisma.
Um raio - fendido o tímpano ao céu opalescente!
Só os pássaros, de pedra sabão, se mantém imóveis,
na impalpável tarefa de suster a paz que há de vir -
carteiros angélicos. Da janela da mansarda, em frente,
alguém estende uma mão para a chuva. Sopesa
as linhas da vida? O tempo suficiente para pensar
se não estará de ressaca, com a sensibilidade à flor
duma pele ressurrecta. Uma da tarde, estendido no sofá,
gozas a panorâmica da janela que rasga toda a parede
da sala. Nisto tiveste sorte, concedes. O Messiaen
martela o piano, é uma vibração que incandesce
na pausa entre as notas, como uma língua
que sobe pela nuca. Sabes que não há volta
a dar – partiste para não voltar. Como
esta música que se despede de Deus.
Se assomares à janela verás uma constelação
de sombrinhas corvídeas. Já te surpreendeste
nas ruas de Maputo com o único chapéu garrido
das imediações. Outro dos lugares-comum
idos, tal qual o dos cheiros, que afinal realçam
o lixo, o lodo, e pouco devolvem de luminoso.
Mas o Messiaen é, neste instante, tudo o que em ti
respira, a sua arte de converter cada gota
deste reboliço atmosférico numa gema
de orvalho em visita a um naperon branco.
É que o corpo se cansou de ser enigma e preferes
preservar o tanto que resta fora de ti. Aparições
onde descansas do estampido das coisas inexpressas,
do balanço das memórias numa cabeça a prazo.
Os anos já aturdem, talvez porque a vida
seja a soma do que repelimos, e aprecias
a floração propícia ao desapego, o vazio
estilhaçar das clarabóias interiores. E fluem
velhos lenhos para novas chamas, meditas
no desastre da tua vida, sem que a dor te abafe,
nas recônditas veredas do mistério. Ou na beleza,
que não nasce do sublime e antes se intensifica
na hospitalidade da renúncia. Fiapos
que a presença dela dilui. Vem do duche
nua, dourada pela luz que em ti declina,
e então pedes, anda, deixa-me cheirar-te.
E ela coloca as suas pernas à roda
do teu pescoço e a sua vulva sobre o teu rosto.
Encaixa. Como um país nas suas linhas telefónicas.
RELEITURA DE “AS MINHAS PROPRIEDADES” DE MICHAUX
Ferido pela descomedida beleza da buganvília,
pode o neto da costureira de Estômbar furtar-se
a um destino fuinha, aos seus olhos de larápio,
à sua mesquinha astúcia arrancada ao que desola,
secreto e inútil – ao tanto a que o indispôs a vida,
de nascença? Apesar de uma pálpebra estritamente
impessoal, como compensar um coração que se dá
duma assentada? Nem temas, nem desenvolvimento,
nem construção, nem método. Assim aportei
em África, à cata de saúde, sacudido
por uma impotência em confinar-me.
Eis-me a cachimbar, na varanda com vistas
para o Índico, ou minto - essa é a das traseiras.
Mas a lâmpada, em rigor, é a mesma
e o vento, por cima, penteia corvos.»
São vozes muito distintas. O que aliás me divertiu imenso, e me saneou do espírito quaisquer preocupações com a História da Literatura, as HUMAANNIDADES, etc. e tal, e me fez aflorar o humor, que eu escondia.
Agora, navego entre um género e outro e às vezes consigo que se entrelacem numa liga. Ou antes, a Izabel Lisboa lembrou-me um verso de Não se Emenda a Chuva, que faz o relato dessa translação: “Desapeado de estações obsessivas vou-te ensinar uma coisa: a semente tem de morrer para produzir a abóbora.”
É o que me faz gostar muito de «A Fadiga de Ser»:
A FADIGA DE SER
Assim que me livrei,
como lastro,
dos brilhos Precipitou-se sobre mim,
anelada, fulgurante, a noite.
Sobejam ainda pequenas vaidades
e um drama
insolúvel para um lerdo animal de carga:
não tenho a memória na ponta da língua.
Daí que, quando, na senda
do que respiro, a imaginação
me afunda no seu lençol freático,
tenha que me certificar
se não nado como um coentro,
pois a morte é a granel,
não escolhe os filhos. Eis
o farnel de prudências
que retive,
do mais me desfiz: de sinais
de identidade, de amores aparatosos,
de palavras que fulgem
como isqueiros.
Compreendi de súbito que o importante na mão
é a sua leveza, abrir-se
para dar, abrir-se
para receber. É o que a mão e o ninho
têm em comum: o vento
Aparelha a sua asa, desapega-
as do corpo. As vezes
que fui assaltado por sonhos onde a terra
era a gengiva dos cadáveres que me olhavam
rindo, a bandeiras despregadas!
Desfiz-me dos sonhos, do fluxo da sua zoologia.
De Deus,
que perfura os pés – idem!,
Shut! Andor!
E agora, mal fecho as pálpebras, uma infância
tropeça nas escadas, uma galinhola
tomba de joelhos,
e em pleno voo, um prego finalmente respira fundo.
É uma vigília que não cessa e nos meus pulsos
a fadiga de ser
prodigaliza a foda de ser outro.
Maputo engrandece, agiganta-se, eterniza-se, com o teu olhar perplexo com a sua própria erosão. Também ele é vento que agita o capim na periferia, pinta o chapa e limpa o lixo. E eu quase desacredito do que leio.
ResponderEliminarNão tem fim a dádiva que nem a história.
Que improvável retribuição...
Dizem que a vigília sempre trás muita lucidez, uma vigília que não cessa, então, nem se fala...É um eterno não dar conta... E eis aí o rio, Sr. Heráclito! rsrs
ResponderEliminarJá vou no quilómetro 128 e ainda não chegeui ao fim. Mas a paisagem é bem melhor que a da A1...
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