segunda-feira, 4 de julho de 2011

E, DE SÚBITO, É DIA


Acordo pela enésima vez, pelo despontar da alba, com o buzinar dos carros e os gritos dos cobradores dos chapas, chamando o people. O gato das minhas filhas vela ao meu colo – um gato riscado como uma noite de sismos.
Sacudo-o, baixo o filme que ainda corre no computador, um maravilhoso «Adam», de Max Mayer, que fui espreitando entre cochilos, sobre uma relação impossível entre uma jovem escritora de livros infantis e um astrónomo tocado pela síndroma de Asperger. Levanto-me, agastado pela gripe, catarrento, os pés nus no soalho frio. Dou um gole de água e dirijo-me à casa de banho. Volto e sobre a pedra de mármore da cristaleira, pejada de livros (o que enfurece a Teresa, mas eu não desarmo) colho um de capa laranja, e torno à cama. Abro-o ao acaso e leio:

«Um fantasma é ainda como que um lugar
de que o teu olhar faz desprender um som;
mas aqui, na negrura deste pêlo,
dissolve-se a mais forte visão:
como um louco raivoso que, mesmo no auge
da fúria, bate os pés na escuridão,
de repente se achasse entre os chumaços abafantes
duma cela onde cessa e se evapora.

Assim ele parece disfarçar dentro de si
todos os olhares que jamais nele pousaram,
para sobre eles, ameaçador e agastado,
se fechar num arrepio e com eles dormir.
Mas súbito, como que desperto, volta
o rosto para ti e contempla-te nos olhos:
e então encontras o teu próprio olhar no âmbar
amarelo das pedras redondas dos seus olhos,
inesperadamente: incrustado e fóssil
como um insecto de remotas eras.»

Releio, encantado este Gato Preto, de Rilke, traduzido pelo Paulo Quintela, e antes de ir à janela espreitar o dia pressinto que alguma pacificação enche de jasmim a luz. Afinal as árvores marcham com o vento, não é?

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