sábado, 16 de julho de 2011

LEMBRAR A SUSAN SONTAG

As arrumações têm isto de bom: fazem-nos reencontrar o que estava esquecido e reelaborar antigas leituras. No meio de uma amálgama de papel e lixo encontrei um dossier sobre a Susan Sontag que baixei da net há uns anos, e que foi coligido por uma Universidade do Chile por ocasião de se terem feito 5 anos sobre a morte da escritora em 2004. Saneado o lixo da secretária, arrumada (ainda que tudo isto seja vão e vá durar 48 horas), pus-me de papo para o ar a reler o dossier.
Achei quatro pepitas que aqui deixo:
1        Susan Sontag, desde menina que considerou a sua infância uma tremenda perda de tempo.
Aos 3 já lia, aos 8 lia Shakespeare, aos quinze anos o director do liceu chamou-a e disse-lhe: “a menina só está a perder tempo aqui, vamos já dar-lhe o diploma para poder ir para a universidade”. Sontag ingressou imediatamente na universidade e aos 17 casou-se. Nunca perdeu tempo.

De facto, de toda a minha infância, só me lembro do tédio. A vida só se me alegrou quando descobri a literatura.
E lamento ter de declarar que não sofri de qualquer complexo de Édipo, que desde que me lembro desejei outras mulheres que não a minha mãe (na generalidade às mulheres lá de casa – a minha tia surda, a minha avó bipolar, a minha mãe tocada por uma bruma de autismo - sempre as achei uma Graias (as três manas da mitologia grega que partilhavam um só olho e uma só dentadura).
Desde miúdo, o meu sentimento dominante foi o de me sentir desapropriado, e fora de casa sempre fiz um humor cruel com a sorte filial.
Só mais tarde, com a descoberta da literatura, me aconteceu o que Sontag evoca quando diz:
 «a literatura alargou a minha capacidade de compaixão»
 tendo-me então reconciliado com a lotaria que me coube e desviado o que me restava de crueldade e ironia para alvos exteriores ao lar.
Só hoje, lidando com as minhas filhas, admito a candura na infância, mas continuo a desconfiar da utilidade da sua duração institucionalizada.  

2.      «A Áustria (comentava o bom resultado de Haider, político de extrema-direita, nas eleições austríacas) é uma nova Sérvia e os austríacos são como os sérvios. Dois povos párias que continuam sustentando os seus respectivos líderes precisamente porque o resto do mundo os condena».

Agrada-me muito este conceito de «povos párias», que associo ao «orgulhosamente sós» de Salazar.
Ainda há dois dias assisti às declarações dum responsável do governo moçambicano congratulando-se porque a Nato já fala em negociações na Líbia, o que só daria razão à OUA, que desde sempre defende uma solução pela via do diálogo na Líbia.
E esqueceu-se de dizer que pela via do diálogo o Mugabe ficou no poder, depois de perdidas as eleições, pela via do diálogo o Kadhafi manter-se-à no poder, depois de massacrar o próprio povo durante 40 anos; esqueceu-se de dizer que o actual Presidente da OUA fez da Guiné-Conackri gato-sapato e que é um dos melhores exemplos do que é a vileza do poder africano.
Tudo em nome da «perpetuação do que está», ainda que seja irracional e tal soberania implique o desrespeito total pelos direitos humanos e a vontade dos povos; e da ideia peregrina de que manter uma «uma péssima solução» contra a opinião de todos é uma marca de identidade. Ou seja, preferem a estupidez à mudança.
«Povos párias» é uma boa designação para os países que colocam o desejo de perpetuação da autoridade à frente da racionalidade dos seus desígnios.

3.«De facto, invejo os paranóicos, porque julgam de verdade que toda a gente lhes está a prestar atenção».

Oh, como os invejo também, coro, tremo, resfolego de inveja. Mas não há ninguém que me lance o mais pequeno soslaio? Que é feito da piedade?

4. Para a Sontag, a literatura era uma espécie de chamamento, de salvação, e era investida de um projecto. Que projecto? Ela responde: «…produzir alimento para a mente, para os sentidos, para o coração. Manter a linguagem viva. Manter viva a ideia de dignidade. Tens de ser um membro da sociedade capitalista do século XX (e XXI), para compreender como a dignidade em si mesmo pode estar sendo questionada…».

Infelizmente a Sontag, aqui, não tinha toda a razão. Também nos países do Terceiro Mundo se sente o assalto à dignidade – isto é aos valores irredutíveis que formam um carácter.
Exactamente porque se perdeu qualquer noção de uma educação para os valores e o meio social pelo contrário multiplica os exemplos de que tudo está à venda neste frágil tecido humano.
Ontem, veio despedir-se uma colega da Teresa, mãe de duas crianças que têm povoado cá a casa. Vão voltar para Portugal, de vez. O marido havia crescido em Moçambique e, anelado pelo afecto, quis vir para ficar. Qual foi a gota de água que os fez decidir partir? Foram passar uns dias ao Tofo, uma praia a 500 km de Maputo, e numa saída à noite com as filhas (de 7 e 10 anos) foram barrados pelo porteiro duma discoteca, que não queria deixar entrar as crianças. O que eles acataram. A mais velha é que não se conformou, tendo acusado a mãe de que não tinham entrado porque «ela não quis pagar» ao porteiro – leia-se subornado. Eles compreenderam que, apesar do esforço feito em casa, era impossível manter as filhas estanques da influência do meio.
Parece uma pequena coisa mas é uma coisa monstruosa, e presente na mais pequena prática do quotidiano, em Maputo.
Há um mês a minha filha foi tirar o seu bilhete de identidade (como moçambicana) e pagou a taxa de urgência. E perguntou à funcionária, “daqui a quantos dias posso levantar o BI?”. Respondeu-lhe aquela, “segundo o que está estipulado, em três dias, mas se a menina não me der mil meticais não vai ficar pronto…!”. Assim mesmo, sem papas na língua, a funcionária, ao balcão, em serviço, exigiu a sua comissão.
Na mesma altura, uma amiga foi levar ao aeroporto um casal amigo que cá tinha estado em lua-de-mel. Na entrada para a sala de embarque, quis acompanhá-los. O que, claro, é proibido, e lhe foi lembrado. Acatou, despediu-se e virou as costas para sair. E ouviu a sugestão da funcionária do aeroporto: «…se a senhora me der dinheiro para o chapa…». A minha amiga saiu chocada com a sugestão da funcionária e a facilidade com que qualquer meliante, terrorista, ou pessoa ruim pode ali penetrar sem custo (enfim, o custo do chapa), contornando a segurança do aeroporto.
Pequenas coisas mas omnipresentes, disseminadas, que vão corroendo os valores, corroendo o carácter e diluindo a dignidade.
Pode a literatura alguma coisa? Sempre é um regime ideal onde se adquirem valores, contra a bagunça lá fora. Por isso, ler (boa literatura), é absolutamente (e de novo) preciso.

1 comentário:

  1. Belo diálogo com Susan Sontag. No que se refere a este último ponto, lembrei-me também das tuas pesquisas sobre a violência contra a mulher nas várias regiões moçambicanas, para além daquele texto, divertidíssimo (deste humor desencantado tão feroz nos teus textos), que me enviaste há uns dois anos, e que explicava o teu "baptismo de fogo", em plena na alfândega do aeroporto, com 20 quilos de livros que causavam perplexidade nos funcionários... Foram publicados? Ah, e claro, aqueles textos sobre as últimas eleições, sobre a ilusão da unanimidade, fazem pensar nisso tudo também... e também no estado (de excepção) enquanto categoria que mina o acesso à dignidade. A boa literatura é absolutamente necessária, certo. Mas deixo uma pergunta, que me faço vezes sem conta quando a leio ou a estudo (a de Moçambique)sem ainda encontrar resposta: pode ela realmente fazer alguma coisa? Um abraço grande pra vocês, cá de Barcelona.

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