domingo, 17 de julho de 2011

A PAIXÃO SEGUNDO JOÃO DE DEUS VI


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Na Suiça, em Neuchatel (a água é o único elemento de que não prescindo), fui ascensorista durante seis meses. Uma profissão rilkeana: pela alba, ascende a sombra da rosa! A minha admissão foi imediata porque me apresentei ao gerente do hotel em latim e depois o português, o francês, o espanhol, o italiano e o húngaro borboletearam no meu palato sem atritos à vista.
Só no inglês gaguejo, por causa de uma falhada entrevista com o John Wayne que me inibiu para sempre. Por alturas do Cinéfilo, o Fernando Lopes, chutou-me para Madrid: a instrução era uma, sacar do coldre uma entrevista ao cowboy indomável. Combinámos no bar do hotel dele e cheguei uma hora antes de tempo. A minha neurastenia fez-me deglutir meia dúzia de Bushemills nessa hora – o atraso dele, de quinze minutos, foi a propulsão para mais dois. Mas a língua não se me embarga, se a garganta se avinha. O problema foi outro: o porte, a estatura que avançou na minha direcção (apesar de lhe conhecer os traços de cor) excedia tudo o que estava disposto a admitir para um homem. O Wayne era um portal, e na bacia nonchalante que evoluía na minha direcção despontava o centauro. Aquele Hara não se compadecia com a estreiteza do meu. Compreendi de um ápice que não passava do porta-moedas de Quíron, e o álcool trovejou no meu crânio borrando de medo o meu inglês exponencial. Não consegui acabar uma só pergunta e a bisarma deixou-me sentado após vinte minutos de gaguejo; a sua mão de vaqueiro consolou-me o cachaço e aconselhou um gorosan. Nunca mais o meu inglês se desabituou de brancas, recuperando desse malogro.
Continuando. Um ascensorista favorece muito o actor, em busca da gorjeta. Nem sei o múltiplo em que naufragaria Pessoa se em vez de empregado de escritório tivesse sido ascensorista, deve ter sido nesse arrepio que escreveu: Nada deseja/ salvo o orgulho de ver sempre claro/ até deixar de ver.
A lábia favorecia-me, e, como de quinze em quinze dias me calhavam folgas de três dias, comecei a atravessar a passar a fronteira para ir a Bruges ver o Hans Memling e comer moules, outra fraqueza inexplicável no meu carácter.
Não tinham passado mais de três meses quando aquele congresso internacional sobre Victor Hugo encheu o hotel de literatos. Eu preveni-me. Tendo notícia daquela enchente uma semana antes fui à biblioteca municipal requisitar cinco ou seis obras, que me permitissem entabular conversas com os congressistas. E li de um fôlego Les Contemplations, Les pecheurs, uma biografia, o Journal de l’Exil. Ah, e a Inês de Castro, para ver como é que o velho tinha despachado aquela palhaçada.
Troquei versos por gorjetas, entre o 1º andar e o 9º, não há como macaquear num gigante os seus rudimentos (são assim as teses universitárias e com menos citações do que as que desembainhei nessa semana). Mas, extraordinário, foi o sonho que tive com ele e o colóquio que travámos.
É conhecido que, em New Jersey, Victor Hugo se entregou a umas sessões espíritas, a cujas quais compareceram Platão, Esquilo, Galileu, Maomé, Dante, Shakespeare (que, em homenagem a Racine, fez a sua charla em francês), Chénier, e tanti quanti. Uma noite, supunha-me eu no mais empedernido nicho de Morfeu, e uma luz bruxuleante levanta-me as persianas. Cheirou-me a petróleo e sentei-me alarmado.
À beira da cama estava Victor Hugo. Atrás dele, num círculo, viam-se os espectros dos seus companheiros de sessão, numa mudez de cera. A sua voz, vinda de um poço, ecoava-me na cabeça.
João de Deus?
Sim.
Frequentaram-no sempre, as vozes?
A Voz, Deus não cede direitos.
São filamentos. Também o tempo usa as montanhas.
Nunca se sentiu usado por Satã?
Um mar de pedras em sobressalto?
Que o levou a fugir de Paris?
A vertigem com que no sangue as coisas tendem a ser outras.
Que gera o medo, além do medo?
João de Deus: o vento escoa num grão de areia…
Que mais o espanta na Criação?
Tantas palavras para tramar o espanto?
O consentimento do mundo, meu vate, vem da palavra ou da acção?
Age e Deus dessedenta-se no teu talo…
Aqui, não sei como, soltou-se do meu crânio uma centena de lampadários que lhe iluminaram majestosamente a fronte e no momento seguinte comecei a ditar-lhe um livro, ou quase: L’Ocean.
No meu espírito decorreram dois meses durante aqueles quinze minutos, comigo a ditar os aforismos e ele a anotar:
«La vieille reine de Portugal, mère de don Miguel avait été fort dévote et presque sainte. Quelques années avant sa mort elle devint folle. Sa folie était de se croire en paradis. Seulement il parâit que ce paradis était au-dessous de son idéal. Elle disait souvent : tiens ! ce n’ést que cela ! si j’avais su ! Sa sainteté du reste était contestée. Mon confrère Brifaut me disait : - je connais un portugais qu’elle avait forcé de lui faire un enfant.» ;
«Le penseur est comme la terre. L’un ne garde pas plus l’ombre des événements que l’ autre ne garde l’ombre des nuées.» ;
«Laissez-moi vous dire, madame,
Que je n’ai, sort doux et cruel,
Rien que votre nom dans mon âme
Rien que votre aile dans mon ciel.» ;
«Avant la création, Dieu était atôme.
La création est son volume.» ;
eu sei lá, aquilo brotava.
No fim perguntou-me, grato:
Que posso dar-lhe em troca?
Pedi-lhe, timidamente:
Um pentelho de Mme Emile de Girardin (a cortesã que em New Jersey o incitava ao espiritismo).
Ele guardou um momento de silêncio:
Esses, sabe Deus que são de aço. Pede-me outros…
Então de Adéle.
A minha filha?
Adéle H.   
Assim será feito.
No dia seguinte, ao acordar, a minha mão dormente tocou um saquinho de veludo azul. Atado por um cordão de ouro. Continha uma madeixa de cabelo, um dente de leite e três pentelhos. Foi generoso o poeta.
O meu colega da recepção ficou a zeros quando lhe apareci radiante e lhe garanti:
Meu gato-pingado, toma lá segredo de homem que abdicou de ser histrião: a fada do dentinho existe!
Passei os dias seguintes a tentar rememorar os aforismos que havia ditado ao vate. Mas, quando um mês depois folheei na livraria L’Ocean e li «N’imitez rien ni personne. Un lion qui copie un lion devient un singe», fiquei um nadinha sentido, e soube então que o tempo era um acordeão e não raras vezes o futuro se revê no passado. O Poeta ultrapassara-me pela esquerda.

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