domingo, 10 de julho de 2011

A PAIXÃO SEGUNDO JOÃO DE DEUS V


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L’ EXIL

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Às vezes, a vida admite evasivas. Escolhi a Suiça por dois motivos. Ao contrário do que se diz, é país sem cucos. Não tem cucos. Nada me enerva mais que um pássaro que só martela uma sílaba. Nos Alpes, aos primeiros nevões os cucos caem maduros como fruta cristalizada… Deixe-me apanhar aquela beata… Não se deve deixar o fogo morrer… Hum, e queria visitar o túmulo de minha mãe.
A minha origem é franco-húngara. Já adivinhou: judearia. O meu pai, Dominique Le Beau, um garboso antiquário francês, com muitas ligações na Áustria e na Hungria, conheceu a minha mãe em Budapeste, a filha de um colega seu com quem negociava relógios antigos.
O colega ainda hesitou, posta a diferença de idades. Uma posta salgadíssima de preconceitos por demolhar, pois o meu pai tinha uma fina estampa, e não este caco que aqui vê, e aos 40 era ainda flor para inebriar a primeira cachopa de 24 que se desse ao trabalho de cheirá-la. Mister sem dificuldade para a minha mãe, de quem herdei o apêndice.
E então o velho deu o xeque-mate e ofereceu ao futuro sogro um relógio de especiarias do século XVII. Na época em que a iluminação caseira se fazia a velas e não se dispunha de fósforos, a leitura das horas, no escuro da noite, podia constituir um problema espinhoso. Em França, Monsieur de Villayer, há gente que até a espirrar tem génio, projectou um relógio cujo mostrador tinha encastoadas, no lugar dos números, tipos vários de especiarias. De noite, Monsieur Villayer sugeria que se tocasse com um dedo o ponto indicado pelo ponteiro: as horas eram validadas lambendo o dedo. Hora do cravinho? Três horas. Olá, sabe a piri-iri! Seis horas, tenho de despachar-me… Foi tiro e queda: quem não troca uma filha por uma gorjeta gastronómica?
Disposta a minha mãe, profanou-lhe o meu pai com denodo a fonte e os jardins perfumados.
E nasci eu, precoce. Precoce em tudo menos na fala. Durante três anos não proferi um ai, para desespero dos meus pais. Não emitia um som, como se tivesse nascido na altura do mudo. Nunca decifrei este enigma, eu que sou um adiantado mental. Ultimamente, carteei-me com Grotsteen, o homem dos buracos negros na mente mas de pouca utilidade me foi.
O desprevenido do meu pai transferira os seus negócios para Budapeste às portas da Guerra, e em 43 percebeu finalmente que os astros de Hitler lhe eram desfavoráveis. Havia que arrepiar caminho.
Foi uma aventura, de cuja primeira parte nada recordo, mas, dizem-me, rocambolesca. Marchávamos já em solo suíço, nas montanhas, a dez quilómetros do destino, e eu começo a dar sinais de agonia.
Agoniava-me o branco.
Sou, de nascença, muito sensível às cores, dizem-me que agarrava os objectos por causa das cores e não pelas suas funções. Os garfos tiveram de os pintar de encarnado e os pratos de amarelo, eu recusava-me a comer em faiança branca. Nos Alpes, sentia-me esquartejado por quatro ginetes cor de leite. O meu pai, se contava o desespero que então me entreviu nos olhos, enchia os seus de lágrimas.
E então saiu-me o primeiro grito. Mãããaaaeeeeeeeeeeeeeee, um grito esganiçado mas intenso, brutal, capaz de fazer o escalpe ao do Munch. O meu grito reboou num eco que se prolongou interminável por causa da avalancha que se lhe seguiu.
Só eu e o meu pai nos salvámos, no cimo de uma árvore, a minha mãe ficou sepultada. Como quem diz. Misteriosamente nunca mais lhe apareceu o corpo.
Entende agora a minha segunda motivação para a escolha da Suiça: descobri-la sob o gelo como a Ofélia de John Millais.
Depois da morte de minha mãe, o meu pai não admitia permanecer naquele solo, e acabámos por aterrar em Tomar, onde ele manteve um pequeno antiquário. Pelos meus 10 anos, às vésperas de partirmos para Paris, o meu pai foi convulsionado por uma trombose que o deixou meio tolhido e incapaz de falar, e eu acabei por crescer sozinho, pelejando com os fantasmas dos Templários.    

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