Um belo rosto é talvez o único lugar onde há verdadeiramente silêncio, escreveu Agamben.
Uma pedra espantada pelos ventos desencontrados que a eriçam, eis, talvez o único golfo onde verdadeiramente há silêncio.
Os olhos de uma mãe que olha pela escotilha a laje líquida que lhe sequestrou o filho: aí se recorta e cristaliza, o silêncio.
O eco que, ao fim de milénios, encontrou uma pequena borracha na praia: o impreterível lugar onde se despe verdadeiramente o silêncio.
Uma bela cicatriz - o fiel panejamento duma ferida inicial -, será, seguramente, a dobra onde o silêncio se banqueteia.
A última pulsação de uma vulva saciada, antes de cair no sono: refúgio do único lugar onde vinga o silêncio.
O breve descomprometimento da gota de orvalho que se precipitou do algeroz, naquele compasso de espera: talvez nesse trânsito se observe realmente o silêncio.
Naquele que extrai a sua alegria da pobreza manifesta-se o espaço público de quem não teme no silêncio um destino.
Na rosa que floresce contra o muro de cal e vira as costas à afectação, talvez, talvez, se encontre o derradeiro lugar onde pulsa verdadeiramente o silêncio.
A tua língua que acolhe a película adstringente do porto seco enquanto os teus olhos humidificam os meus será com certeza o lugar principal onde o silêncio reconhece o seu perímetro.
O búzio que te trouxe do Zimbabwe e que não encostas ao ouvido, temerosa de que o fragor das cataratas Vitória te ensurdeça às minhas palavras vãs, é certamente o único lugar onde se adensa o silêncio.
Numa fotografia de uvas bicada por um tentilhão mora talvez o último lugar onde o silêncio achou o seu talhe.
Mas nenhum belo estratagema revela ao sigilo a face do silêncio.
E o morto, que recua até ao infinito e me empurra para diante, talvez seja o primeiro intervalo onde começa a esvanecer-se o rigor do silêncio.
Quem salva agora as aparências ao mutismo?
E se chover, quem lhe empresta a gabardina?
foi o poema que mais gostei de ler pela sua mão. obrigado e um abraço
ResponderEliminarmuito bom
ResponderEliminarEis então o silêncio que nos ronda. Bravo!
ResponderEliminarGosto muito da sua poesia, António Cabrita, já sabe isso. Mas não sei o que tem este poema que não me canso de lê-lo. Apetecia-me gritá-lo, para quebrar o silêncio. Obrigada. Beijo.
ResponderEliminarAliete