domingo, 25 de março de 2012

PIERRE REVERDY: LEGÍTIMA DEFESA

pierre reverdy

O poeta Pierre Reverdy escreveu em 1919 um livrinho de 40 páginas, Self Defense, onde numa série de aforismos, estabeleceu uma poética que ainda hoje tem alguma ressonância. Noventa e três anos depois, aqui traduzo algumas dessas gemas:  

Certos artistas criam obras despojadas; resultam estas de um trabalho austero, associado ao talhe de um espírito estóico, dado a muitos sacrifícios e restrições. Outros artistas esfolam as suas próprias obras e então não lhes resta grande coisa no final.

Nem todos os sonhadores são poetas mas há poetas que são sonhadores. O sonho é estéril naqueles que não são poetas.

O sonho do poeta é fecundo. E exerce-se neste, enxertado no que nos outros se chama o pensamento. O sonho é então uma forma especial de pensamento. No pensamento é o espírito quem penetra, no sonho é o espírito quem se deixa penetrar.

Talvez seja bom que o espírito do poeta se deixe penetrar, mais do que afadigar-se para penetrar.

É no momento em que as palavras se desembaraçam da sua significação literal que tomam no espírito um valor poético. É nesse momento que as podemos semear livremente na realidade poética.

Criamos graças aos meios – e imita-se graças aos processos. Estes são a decadência e a imitação daqueles.

Para aqueles que a servem, a arte é um fim; para aqueles que dela se servem, a arte não passa de um meio.

Conhecer a sua arte e ser erudito são duas maneiras de saber que é preciso distinguir. A erudição consiste sobretudo em conhecer a arte dos outros.

Temos mais o hábito da vida que da arte, donde o sucesso das obras que dão uma aparência de vida. Apresentar uma obra que se eleve acima desta aparência é exigir uma formidável mudança de hábitos.

Uma janela desenhada numa fachada e o buraco de um muro degradado - coisas diferentes; e sobretudo que não seja uma questão de elipse.

Em arte, o primeiro cuidado de um filho é o de renegar o pai.

Que obra é essa, qual é ela, de que possamos retirar a ideia ou a anedota - as quais, isoladas, nada valem -, e à qual, após essa subtracção, nada resta?

O belo não sai das mãos do artista, mas isso que sai das mãos do artista torna-se o belo.

A duração do interesse duma obra está talvez na relação directa do inexplicável que ela comporta. Inexplicável não é sinónimo de incompreensível.

Os primeiros são muitas vezes os últimos. A mediocridade reconhece sempre os seus.

Não creio que o génio seja uma longa paciência… Mas é preciso ter muita paciência, mesmo quando se tem génio.

Para o pintor há o recuo da distância. Para o escritor não há senão o recuo que lhe dá o tempo.

Acontece muitas vezes que uma obra agrade por causa da sua intenção: é raro que uma obra agrade malgrado a sua intenção.

A crítica de uma obra assenta sobre as ideias ou sentimentos que aí são exprimidas, mais do que sobre a sua estrutura, a sua forma, a arte pessoal do autor, e nunca sobre os meios próprios a este autor.

O que o público não quer compreender é que lhe querem mostrar outra coisa, para além do que ele admite procurar.

Nós queremos com tal intensidade compreender que nós desaprendemos de amar.

A realidade não motiva a obra de arte. Fala-se de outra vida para atingir uma outra realidade.

Um elemento não se torna puro senão desligado do sentimento que entroniza a sua situação na vida. É necessário despojar-se desse sentimento para que na obra ele jogue um papel sem detrimento para o seu conjunto.

Há justas correspondências entre os elementos livres numa obra mas a harmonia não passa de um embelezamento.

Muitas camaradagens artísticas não passam de contratos de publicidade.

O cogumelo desponta num ápice, sobre o tronco; ele não faz parte da árvore. Se queremos chegar à arte algumas vezes é preciso começar pelo homem.
A cabeça de um homem atrai o piolho. Se este último escolhe a cabeça é porque ele aí vê, sem dúvida, uma vantagem pessoal, demasiado pessoal. De outro modo não se explica que o piolho não adquira, com o tempo, a estima pessoal desses homens que ele tanto adora.
A pulga crê-se certamente digna do homem. Resta ao homem o cuidado de provar que o piolho é indigno dele. Mas quando ele se coça, o seu gesto tem muitas vezes o ar de uma carícia.


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