sábado, 17 de março de 2012

CORAGEM: DIZES. TEORIAS

aqui
yves klein


 
Teorias, se chama o singular livro que o manuel a. domingos me enviou.
Já o li três ou quatro vezes, e tanto gosto muito como me incomoda. É um excelente sinal, que as Teorias me incomodem, o que me leva a dialogar com ele – livro e autor – sobre estes dois aspectos.
O livro abre com uma epígrafe do Manuel António Pina, que diz assim: «porquê a poesia/ e não outra coisa qualquer:/ a filosofia, o futebol, alguma mulher?».
É uma pergunta oportuna, e o próprio manuel a. domingos lhe responde, neste poema:
«A primeira amante
te ensinou a diferença
entre ode e epopeia
 enquanto te apertava
e recitava
Homero ao ouvido

E durante
o seu arfar
um ou outro
ai!
descobriste
que a poesia
também
é disso feita.»
Não creio que haja um poeta que seja sério que, a dado momento, não se coloque a questão da articulação da poesia com a vida e não queira achar noutras manifestações essa expansiva forma de inteligência/emocionalidade não circunscrita que a poesia desperta e que tanto nos atrai como nos inquieta, por causa da suspensão do nosso controle nela. Contudo, o Pina faz a pergunta, mas não abandonou a poesia, não a trocou por uma mulher, um lugar cativo de adepto no estádio, ou por três horas diárias de comentários em Kant. Portanto, há algo que a poesia tem que não desgruda e que é diferente do encontro com as outras coisas.
Agora, ele não podia deixar de colocar a questão na altura em que a formulou. Repare-se: o Pina, quando apareceu, escrevia contra uma corrente anti-discursiva, absolutamente ancorada na metáfora, e com laivos de orfismo na sombra poética que era então dominante, o Herberto. Ele tinha que achar o seu trilho numa floresta com uma vegetação adversa. Ainda me lembro de um poeta muito conceituado me ter dito sobre o Pina, «bem apanhado, mas muito racionalista…», como se a boa poesia só pudesse e devesse ser irracionalista. Ou pior: como se a “pulsão irracionalista” da poesia tivesse obrigatoriamente de ter apenas um sabor, consentido e mapeado.
E então o Pina, que soube cruzar os humores de Pessoa e de Cesariny, e tinha que impor a sua pertinência, fez o seu papel de pequeno dinamitador, de desconstrutor das inércias vigentes – sempre, com extrema delicadeza, como quem não quer a coisa, fazendo simplesmente perguntas a si mesmo. E engatilhando-as achou o seu caminho.
Não obstante manteve a crença – ainda que sob reserva -, por isso não abandonou a poesia. Porque se a poesia for unicamente jogo esgota-se rapidamente, é preciso chegar ao playing. E nesse transe não se volta a lançar os ossos na demanda de uma adivinhação se não se crê minimamente no ritual. Claro que para a saúde mental e para a renovação dos próprios processos convém inquiri-los. Contudo, retenha-se, que o paradoxo da crença é que não se dá sem a dúvida. Daí que seja um bom sistema acreditar piamente na plausibilidade taumatúrgica da palavra às terças, quartas e quintas e nos restantes dias da semana suspendermo-la, procedermos como o místico que conheceu Dada. Veja-se como o Pessoa é simultaneamente um poeta ocultista e um herético desconstrutor. Esta dimensão dialógica é a que nos faz romper a psicologia, partir da circunstância num poema para a transfigurar numa outra dimensão em que o incidente passa a Categoria. E, neste trespasse, suspeito que os melhores poemas “realistas” aspiram afinal à metáfora.
Dizia o designer Robert Edmund Jones, defendendo o expressionismo contra o realismo: «O realismo é uma coisa que praticamos quando não nos estamos a sentir muito bem. Quando não estamos com vontade de fazer um esforço extra». Em muitos dos poemas de Bukovski – que o entusiasmo do manuel a. domingues me levou a reler – estamos literalmente sob influência da ressaca, isto é, sai-lhe o que a menor tonicidade do momento deixa. É como jogar bilhar para passar o tempo, é porreiro, mas um campeão de bilhar necessita de um treino de outro tipo.  
Claro que o Bukovski tem excelentes poemas, é indiscutível, mas no seu melhor acontece-lhe como neste poema de Brecht:
 «UM FILME DO CÓMICO CHAPLIN
A um café do Boulevard Saint Michel
Chegou um senhor pintor numa chuvosa tarde de Outubro.
Bebeu quatro ou cinco cálices de um licor esverdeado
E pôs-se a contar aos ociosos jogadores de bilhar o encontro comovido
Com uma amada de outrora, meiga mulher
No momento casada com um rico carniceiro.
Meus senhores, suplicou, dêem-me depressa, por favor,
O giz que colocam na ponta dos tacos. Depois, de joelhos,
Tentou com mão trémula fazer o retrato
Da amada dos dias idos. Mas logo desesperado
Apagou o que já fizera, começou de novo,
E de novo parou, e outros traços traçou
Enquanto repetia: Ainda ontem o sabia.
Clientes tropeçaram, resmungando, nele. O gerente furioso,
Pegou-o pela gola do casaco e pô-lo na rua. Já no passeio,
Ele abanava a cabeça e ainda perseguia com o giz
Os traços fugitivos.» (trad. de Arnaldo Saraiva)
A textura é realista, a anedota é magnífica, mas afinal ambas ilustram o que não está lá dito explicitamente: a metáfora de que a beleza é fugidia e o nosso “domínio” concreto sobre ela fugaz; nem um pintor experimentado a fixa.
Na verdade, como escreveu uma vez o Herberto, os poetas andam com vagares de galinholas, e ainda hoje é difícil escapar à dicotomia de nos queremos Rimbaud ou Jarry. Com o Rimbaud, trata-se de magnetizar o verbo para mudar a vida, no afã soterológico de salvar a vida, com o Jarry de pulverizar o verbo para mudar a vida em jogo, até à derrisão final.
Não há nada mais provocador do que a admirável resposta de Jarry à sua senhoria. Jarry adorava por-se aos tiros e um dia a senhoria aflita lembra-lhe: «Cuidado, há crianças! Pode matá-las», ao que ele responde de imediato: «Minha senhora, não há motivo para cuidado, nós far-vos-íamos outras». É uma boutade fantástica, como boutade – dita por alguém que tinha uma capacidade de criação tão grande como a sua energia destrutiva. O Picasso também dizia: “para criar é preciso primeiro destruir”, mas eis-nos diante de dois casos onde a paródia se desdobra no novo, em formas e vocabulários fecundissimamente renovados.
Hoje, ao contrário do tempo em que apareceu o Pina (era quase proibido rir naquela altura e mesmo o O’Neil, por isso, era tolerado pelos seus pares), verifica-se em alguma poesia portuguesa uma atracção fatal pelo pendor paródico, que às vezes cai, por tique, no beco do cinismo. Escreve-se para se demonstrar a vanidade do acto, sendo um tropo instalado a anemia poética e a sua impossibilidade de resgate. A sua impotência.
Dou um exemplo no Teorias (falamos do que menos gosto no livro):
«Soneto 3
Gosto de fazer
a barba enquanto
no duche cantas
um qualquer samba
 que sabes de cor
Eu de cor só sei
um ou outro verso
que aprendi na escola
 mas confesso
que isso agora pouco
ou nada importa
Cortei-me e não há
verso capaz
de estancar o sangue.»
De facto nunca houve verso capaz de estancar o sangue. Mas antes de ser feita era impensável uma auto-estrada em pleno Amazonas. E a chave do soneto torna-se fácil, previsível.
Do mesmo modo, para esgotar o que me incomoda, não creio que este livro, que na generalidade me agrada bastante, comece bem; há uma certa batota no uso de um efeito nonchalance que agradará talvez à nossa época frívola, aos nossos parceiros de disforia:
«Ainda um dia
escrevo
 

um livro
de poesia
e será
muito apreciado
no meu grupo
de amigos»
mas cujo retórico jogo defensivo me parece desnecessário, pois, felizmente a poesia do manuel a. domingos tem inúmeros momentos em que com sua extrema concisão – a simplicidade, a eficácia da corrida de uma chita - se abre a um pleno valor expressivo, merecedor de passar largamente a fronteira autárquica dos seus amigos:
«Uma mulher
grita
contra um gafanhoto
Uma criança
mostra
um desenho ao avô
Uma andorinha
faz
o reconhecimento
dos telhados»
;
«Saneada a questão
de despertar
enfrentas o espelho
na tentativa
de espantar
a ramela dos dias
 e descobres
que a noite
não te trouxe
cara nova
 outra vida
Coragem: dizes»;
ou:
«É sábado de manhã
e eu estou
para aqui   
em vez de ler
um livro
ou frequentar
uma esplanada
sobre o rio
deliciando-me
com pernas
femininas
 que o tardio

sol de outubro
ainda traz
despidas».
 Como se vê, o livro não precisava de se justificar, nem de forçar a piada nesse acto.
Umas das coisas curiosas no manuel é que – não sei se ele sabe – indo beber, e bem, em Bukovski (no modo de partir o verso, numa certa respiração do poema, no despojamento frásico, nalguns temas afins) acabou por se aproximar da dicção e do recorte de um excelente poeta português que está todo por reeditar: António Reis, o cineasta.
A poesia, à medida que avançamos nela, de comum, desata a ser pensada em nós como fluxo e não como algo que começa e acaba nos nossos limites. Confundir as duas coisas leva-nos a ceder à tentação escatológica, mas acontece que a poesia não começou connosco e vai continuar para além de nós e em muitos veios. Daí que convenha que o pedal da paródia seja pressionado em doses homeopáticas que nos enriqueçam, mas não se transformem num vício senão galgamos alegremente a sebe do cinismo sem darmos conta de que do outro lado só existe um abismo. Contudo, o manuel a. domingos também anda pelo teatro e isso é magnífico para uma multiplicação das “vozes”.
Outra coisa que me inquieta na poesia do manuel a. domingos vem-me paradoxalmente do que nele é conseguido: a sua contenção ao osso. Normalmente chega-se aí, o manuel começa daí: da pincelada branca sobre fundo branco. Estou curioso em saber se vai caminhar para o silêncio ou que gordura orgânica irá resgatar no seu ossário. Ou pode ser que este Teorias seja pura matéria dramática e que agora nos brinde com um livro inesperadamente barroco. Porque há um olho "sabiamente dramatúrgico" nesta poesia.
O melhor é não pensar nisso, como ele próprio sabe e disse, num dos poemas do livro de que mais gostei:
«Não adianta
pensar nas coisas
na sua mecânica
por menos caiu
Tróia e Jericó
viu as suas muralhas
no chão

Abre a janela
respira o ar
antes que seja tarde
ou o dia passe
ao largo
dos sentidos
Sai à rua
Podes nem
acreditar
há vida
para lá de tudo
isto».
 Teorias vale a pena uma, várias visitas, pelo que poderá pedi-lo para o blogue do manuel, aqui, que já agora também merece ser divulgado. E dedico ao manuel um poema, escrito na contracapa de um livro de Bukovski, portanto, em contágio:   
FUMO DE CIGARRO
                                               para o manuel a. domingos
Ter um corpo e não lhe sentir
o cansaço: uma pretensão que avilta;
Igual só a literatura armada
em piscina de condomínio privado.
O cristal cala o calafrio ou afia-o,
dúvidas de neófito à entrada
do Museu Gongora. Contudo, é im-
provável morrer-se na fonte onde
se nasce. O “em-si” atrai muito pó,
já viste crica empoeirada?
Num sonho a sombra de Cristo
incitava-me a um último desejo.
Dá-me algo que nunca terás,
pedi ao Peixe: fumo de cigarro.
 

PS. - o blogger lixou o entrelinhamento dos poemas. ao fim de meia-hora de luta vã, desisto.




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