yves klein Teorias, se chama o singular livro que o manuel a. domingos me enviou. Já o li três ou quatro vezes, e tanto gosto muito como me incomoda. É um excelente sinal, que as Teorias me incomodem, o que me leva a dialogar com ele – livro e autor – sobre estes dois aspectos. O livro abre com uma epígrafe do Manuel António Pina, que diz assim: «porquê a poesia/ e não outra coisa qualquer:/ a filosofia, o futebol, alguma mulher?». É uma pergunta oportuna, e o próprio manuel a. domingos lhe responde, neste poema: «A primeira amante te ensinou a diferença entre ode e epopeia e recitava Homero ao ouvido E durante o seu arfar um ou outro ai! descobriste que a poesia também é disso feita.» Não creio que haja um poeta que seja sério que, a dado momento, não se coloque a questão da articulação da poesia com a vida e não queira achar noutras manifestações essa expansiva forma de inteligência/emocionalidade não circunscrita que a poesia desperta e que tanto nos atrai como nos inquieta, por causa da suspensão do nosso controle nela. Contudo, o Pina faz a pergunta, mas não abandonou a poesia, não a trocou por uma mulher, um lugar cativo de adepto no estádio, ou por três horas diárias de comentários em Kant. Portanto, há algo que a poesia tem que não desgruda e que é diferente do encontro com as outras coisas. Agora, ele não podia deixar de colocar a questão na altura em que a formulou. Repare-se: o Pina, quando apareceu, escrevia contra uma corrente anti-discursiva, absolutamente ancorada na metáfora, e com laivos de orfismo na sombra poética que era então dominante, o Herberto. Ele tinha que achar o seu trilho numa floresta com uma vegetação adversa. Ainda me lembro de um poeta muito conceituado me ter dito sobre o Pina, «bem apanhado, mas muito racionalista…», como se a boa poesia só pudesse e devesse ser irracionalista. Ou pior: como se a “pulsão irracionalista” da poesia tivesse obrigatoriamente de ter apenas um sabor, consentido e mapeado. E então o Pina, que soube cruzar os humores de Pessoa e de Cesariny, e tinha que impor a sua pertinência, fez o seu papel de pequeno dinamitador, de desconstrutor das inércias vigentes – sempre, com extrema delicadeza, como quem não quer a coisa, fazendo simplesmente perguntas a si mesmo. E engatilhando-as achou o seu caminho. Não obstante manteve a crença – ainda que sob reserva -, por isso não abandonou a poesia. Porque se a poesia for unicamente jogo esgota-se rapidamente, é preciso chegar ao playing. E nesse transe não se volta a lançar os ossos na demanda de uma adivinhação se não se crê minimamente no ritual. Claro que para a saúde mental e para a renovação dos próprios processos convém inquiri-los. Contudo, retenha-se, que o paradoxo da crença é que não se dá sem a dúvida. Daí que seja um bom sistema acreditar piamente na plausibilidade taumatúrgica da palavra às terças, quartas e quintas e nos restantes dias da semana suspendermo-la, procedermos como o místico que conheceu Dada. Veja-se como o Pessoa é simultaneamente um poeta ocultista e um herético desconstrutor. Esta dimensão dialógica é a que nos faz romper a psicologia, partir da circunstância num poema para a transfigurar numa outra dimensão em que o incidente passa a Categoria. E, neste trespasse, suspeito que os melhores poemas “realistas” aspiram afinal à metáfora. Dizia o designer Robert Edmund Jones, defendendo o expressionismo contra o realismo: «O realismo é uma coisa que praticamos quando não nos estamos a sentir muito bem. Quando não estamos com vontade de fazer um esforço extra». Em muitos dos poemas de Bukovski – que o entusiasmo do manuel a. domingues me levou a reler – estamos literalmente sob influência da ressaca, isto é, sai-lhe o que a menor tonicidade do momento deixa. É como jogar bilhar para passar o tempo, é porreiro, mas um campeão de bilhar necessita de um treino de outro tipo. Claro que o Bukovski tem excelentes poemas, é indiscutível, mas no seu melhor acontece-lhe como neste poema de Brecht: A um café do Boulevard Saint Michel Chegou um senhor pintor numa chuvosa tarde de Outubro. Bebeu quatro ou cinco cálices de um licor esverdeado E pôs-se a contar aos ociosos jogadores de bilhar o encontro comovido Com uma amada de outrora, meiga mulher No momento casada com um rico carniceiro. Meus senhores, suplicou, dêem-me depressa, por favor, O giz que colocam na ponta dos tacos. Depois, de joelhos, Tentou com mão trémula fazer o retrato Da amada dos dias idos. Mas logo desesperado Apagou o que já fizera, começou de novo, E de novo parou, e outros traços traçou Enquanto repetia: Ainda ontem o sabia. Clientes tropeçaram, resmungando, nele. O gerente furioso, Pegou-o pela gola do casaco e pô-lo na rua. Já no passeio, Ele abanava a cabeça e ainda perseguia com o giz Os traços fugitivos.» (trad. de Arnaldo Saraiva) A textura é realista, a anedota é magnífica, mas afinal ambas ilustram o que não está lá dito explicitamente: a metáfora de que a beleza é fugidia e o nosso “domínio” concreto sobre ela fugaz; nem um pintor experimentado a fixa. Na verdade, como escreveu uma vez o Herberto, os poetas andam com vagares de galinholas, e ainda hoje é difícil escapar à dicotomia de nos queremos Rimbaud ou Jarry. Com o Rimbaud, trata-se de magnetizar o verbo para mudar a vida, no afã soterológico de salvar a vida, com o Jarry de pulverizar o verbo para mudar a vida em jogo, até à derrisão final. Não há nada mais provocador do que a admirável resposta de Jarry à sua senhoria. Jarry adorava por-se aos tiros e um dia a senhoria aflita lembra-lhe: «Cuidado, há crianças! Pode matá-las», ao que ele responde de imediato: «Minha senhora, não há motivo para cuidado, nós far-vos-íamos outras». É uma boutade fantástica, como boutade – dita por alguém que tinha uma capacidade de criação tão grande como a sua energia destrutiva. O Picasso também dizia: “para criar é preciso primeiro destruir”, mas eis-nos diante de dois casos onde a paródia se desdobra no novo, em formas e vocabulários fecundissimamente renovados. Hoje, ao contrário do tempo em que apareceu o Pina (era quase proibido rir naquela altura e mesmo o O’Neil, por isso, era tolerado pelos seus pares), verifica-se em alguma poesia portuguesa uma atracção fatal pelo pendor paródico, que às vezes cai, por tique, no beco do cinismo. Escreve-se para se demonstrar a vanidade do acto, sendo um tropo instalado a anemia poética e a sua impossibilidade de resgate. A sua impotência. Dou um exemplo no Teorias (falamos do que menos gosto no livro): «Soneto 3 Gosto de fazer a barba enquanto no duche cantas um qualquer samba Eu de cor só sei um ou outro verso que aprendi na escola que isso agora pouco ou nada importa Cortei-me e não há verso capaz de estancar o sangue.» De facto nunca houve verso capaz de estancar o sangue. Mas antes de ser feita era impensável uma auto-estrada em pleno Amazonas. E a chave do soneto torna-se fácil, previsível. Do mesmo modo, para esgotar o que me incomoda, não creio que este livro, que na generalidade me agrada bastante, comece bem; há uma certa batota no uso de um efeito nonchalance que agradará talvez à nossa época frívola, aos nossos parceiros de disforia: «Ainda um dia escrevo um livro de poesia e será muito apreciado no meu grupo de amigos» mas cujo retórico jogo defensivo me parece desnecessário, pois, felizmente a poesia do manuel a. domingos tem inúmeros momentos em que com sua extrema concisão – a simplicidade, a eficácia da corrida de uma chita - se abre a um pleno valor expressivo, merecedor de passar largamente a fronteira autárquica dos seus amigos: «Uma mulher grita contra um gafanhoto Uma criança mostra um desenho ao avô Uma andorinha faz o reconhecimento dos telhados» ; «Saneada a questão de despertar enfrentas o espelho na tentativa de espantar a ramela dos dias que a noite não te trouxe cara nova Coragem: dizes»; ou: «É sábado de manhã e eu estou para aqui em vez de ler um livro ou frequentar uma esplanada sobre o rio deliciando-me com pernas femininas sol de outubro ainda traz despidas». Umas das coisas curiosas no manuel é que – não sei se ele sabe – indo beber, e bem, em Bukovski (no modo de partir o verso, numa certa respiração do poema, no despojamento frásico, nalguns temas afins) acabou por se aproximar da dicção e do recorte de um excelente poeta português que está todo por reeditar: António Reis, o cineasta. A poesia, à medida que avançamos nela, de comum, desata a ser pensada em nós como fluxo e não como algo que começa e acaba nos nossos limites. Confundir as duas coisas leva-nos a ceder à tentação escatológica, mas acontece que a poesia não começou connosco e vai continuar para além de nós e em muitos veios. Daí que convenha que o pedal da paródia seja pressionado em doses homeopáticas que nos enriqueçam, mas não se transformem num vício senão galgamos alegremente a sebe do cinismo sem darmos conta de que do outro lado só existe um abismo. Contudo, o manuel a. domingos também anda pelo teatro e isso é magnífico para uma multiplicação das “vozes”. Outra coisa que me inquieta na poesia do manuel a. domingos vem-me paradoxalmente do que nele é conseguido: a sua contenção ao osso. Normalmente chega-se aí, o manuel começa daí: da pincelada branca sobre fundo branco. Estou curioso em saber se vai caminhar para o silêncio ou que gordura orgânica irá resgatar no seu ossário. Ou pode ser que este Teorias seja pura matéria dramática e que agora nos brinde com um livro inesperadamente barroco. Porque há um olho "sabiamente dramatúrgico" nesta poesia. O melhor é não pensar nisso, como ele próprio sabe e disse, num dos poemas do livro de que mais gostei: «Não adianta pensar nas coisas na sua mecânica por menos caiu Tróia e Jericó viu as suas muralhas no chão respira o ar antes que seja tarde ou o dia passe ao largo dos sentidos Sai à rua Podes nem acreditar há vida para lá de tudo isto». FUMO DE CIGARRO para o manuel a. domingos Ter um corpo e não lhe sentir o cansaço: uma pretensão que avilta; Igual só a literatura armada em piscina de condomínio privado. O cristal cala o calafrio ou afia-o, dúvidas de neófito à entrada do Museu Gongora. Contudo, é im- provável morrer-se na fonte onde se nasce. O “em-si” atrai muito pó, já viste crica empoeirada? Num sonho a sombra de Cristo incitava-me a um último desejo. Dá-me algo que nunca terás, pedi ao Peixe: fumo de cigarro. PS. - o blogger lixou o entrelinhamento dos poemas. ao fim de meia-hora de luta vã, desisto. |
sábado, 17 de março de 2012
CORAGEM: DIZES. TEORIAS
aqui
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário