sexta-feira, 16 de março de 2012

ESCREVER É FÁCIL? OS CÉUS CERÚLEOS, ETC., ETC.

monsieur pollock

Há palavras que nos atraem e que não sabemos porquê, do mesmo modo que outras existem que por mais que repetidamente consultemos o dicionário não se infiltram na memória. Fiz destas uma Tábua das Palavras Que Nunca Saberei Usar, mas perdi a coisa no extravio dum computador, depois de 30 páginas de inventário e devaneio. Mas outras nos compensam com a sua solicitação contínua – ia escrevendo perene – , e, mesmo se ligeiramente anacronizantes, não perdemos uma oportunidade para as tentar aplicar com o devido sabor.
Ao ler hoje um poema de Khlénnikov, na magnífica versão de Haroldo de Campos, apanhei este mimo, que adoraria ter escrito:
«Neste dia de ursos cerúleos
A correr sobre cílios tranquilos…»
O adjectivo cerúleos – a minha palavra mágica nesta equação – dá uma magnífica ambiguidade ao verso para além do perfeito ajuste fonético aos simpáticos ursos.
Céruleos significa «da cor do céu», o que torna estes ursos levemente invisíveis e omnipresentes; ameaça que emprestará tudo aos cílios tudo menos tranquilidade. Portanto, diverte-me muito o dissimulado curto-circuito na abertura deste poema.
Há um outro aspecto que me atrai a este adjectivo desusado, que, digamos, há muito veste calças à anhuca: a sua extrema ambiguidade.
Porque nunca cheguei à conclusão se a designada cor do céu compreende nuvens ou não. Há poemas do século XX que com cerúleo descrevem um céu constelado, ou seja estrelado. Ora de que porra de cor é um céu estrelado? Portanto, cerúleo dá qualidades a uma cor que ora corresponde ao azul celeste, ora nos assalta com a visão do firmamento. Portanto com que direito lhe vedamos a hipótese de ser também pertinente o seu uso num céu enovoado, borrascoso?
Por isso, só uma vez, depois de 35 anos enfrascado em tão lancinantes dúvidas – as garrafas de Borba que entornei no cálculo e na dilucidação impossíveis deste quiproquo linguístico -  consegui resgatar o adjectivo para mim. Foi há dois anos, durante a escrita de A Maldição de Ondina que achei uma clarabóia onde podia finalmente fazer incidir, em luz paródica, a expressão homérica que tanto me apaixonara:
«A denúncia partiu da vizinha, incomodada pelo cheiro. A visão daquele batoque de ceroulas, com dois tiros no bucho, não correspondia exatamente à visão dos céus cerúleos. André-Ruivo “Realizas” encontrara o seu filme: fazia de morto e não era o narrador.»
Ainda há quem diga que escrever é fácil. Eu levei trinta e cinco anos para chegar aqui.
Será que o sr. Lopes ainda terá a vaga livre lá na sapataria?
 


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