terça-feira, 6 de março de 2012

PROSA EM LINHA RECTA


                                                              o meu próximo adversário

                                                            para o meu amigo  Amadeu Baptista, que deseja tanto
 A preparar aulas, fazendo anotações sobre a noção de jogo em Nietzsche, Huizinga, e outros, dou conta de que sou um miserável santorrão.
Em miúdo movi uma guerra surda contra o meu pai que me queria um desportista ferrenho (Cristo nas argolas, chave de braços no tapete) e impiedoso. Competitivo, portanto. Eu, de propósito, apesar de um jeito danado, traía-lhe todas as esperanças. Cheguei a perder um combate de judo por sornice numa competição nacional por equipas, contra um cinto amarelo, eu que já passara no exame para azul, o que provocou a fúria do meu treinador e dos meus colegas. Mas tinha um encontro com uma miúda às 18h e queria era despachar o serviço, mesmo que para isso a equipa precisasse de perder um lugar no pódium. Nunca me galvanizaram os pódiuns. Foi a morte do artista, em casa o meu pai cortou-me o quimono às tesouradas e eu rejubilei.

Irrespondivelmente parasita.

Odiei sempre o espírito competitivo, o sacrifício de fazer três horas de treinos intensivos por dia para roubar duas décimas de segundo ao meu recorde pessoal. Odeio recordes, nunca me bateria à alcunha de seven up de que gozou um relevante poeta português por se gabar de “dar sete sem tirar”. Entrego-lhe já a medalha, do alto desta minha medida bonsai. Indesculpavelmente mole.

Nunca ganhei um jogo de xadrez. A minha mente dispara em anfractuosas divagações e esqueço-me sempre de proceder ao cálculo e de prever antecipadamente três jogadas do adversário.

Umas vezes aguentei 40 minutos à espera que o meu amigo Tinoco movesse a sua peça, até que, impaciente, sugeri, se quiseres levas o tabuleiro para a cama e amanhã prosseguimos. Retorque ele, sorvendo um enorme trago de s. domingos, “é a tua vez de jogar!”. Eu tinha um bispo, uma torre e dois peões de vantagem, mas fiquei tão envergonhado que perdi em três jogadas.

Nunca fui capaz de bater-me resolutamente por um texto, filme, ou livro, nas reuniões de redacções de jornais, a não ser que me tivesse previamente comprometido ou que fosse um caso de justiça a sanar. Os meus colegas, indómitos, trocavam encarniçados argumentos, eu apenas sorria. A partir de determinada altura eram eles que achavam que determinado espectro de obras ou de sensibilidade me era mais afim e eu acatava, descobrindo então com felicidade que podia deixar de ir às reuniões.

O jornal mandou-me para Berlim cobrir o Festival, fui incapaz de ver mais de dois filmes por dia, perto da sala principal do Festival ficava o zoo de Berlim onde podia ver os tigres a levitar na neve, o que me parecia muito mais estimulante; o resto do dia passeava, ia aos museus, comia nos turcos, uma semana depois descobri uma livraria hispânica onde comprei todo o Lezama Lima, todo o José  Emílio Pacheco, todo o Enrique Lhin, todo o José Donoso, e antologias, inúmeras. Passei a ir uma vez por dia ao cinema e passava os dias a ler no bar do Museu Erótico de Berlim, na mesma praça do Festival. Cheguei a Lisboa e fiz um trabalho igual aos outros, mas estava mais rico. E nunca percebi como se escolhe ir cinco vezes por dia ao cinema – acho que perderia a tusa por um mês. Apesar de não dar sete sem tirar seria um prejuízo.

Nunca consegui vestir a camisola de uma carreira, desejar uma subida hierárquica, nada – safar-me a tais desideratos e continuar com o meu dilatado tempo de ócio, constituía a minha cisma. Uma vez na rua fui incitado a fazer um teste de personalidade por um membro da Religião da Cientologia. O meu défice estava na responsabilidade, tinha um nível baixíssimo de sentido de responsabilidade. Ele explicou-me tintim por tintim como a Cientologia me podia melhorar esse item. Fugi imediatamente a sete pés, ainda hoje me meto debaixo da cama se vejo ao longe um apóstolo dessa raça.

Fui convidado várias vezes para o quadro de vários jornais e tratei sempre de falhar esse encontro com a História. No Expresso, em 18 anos, inviabilizei três convites.

A única coisa que me interessava verdadeiramente era abrir um livro de poesia, numa tasca perto do mar e petiscar umas enguias enquanto no livro achava um postigo novo para uma paisagem que me furtasse ao tempo, à morte, à inanidade das belezas imarcescíveis, porque do belo só me interessa o trânsito e a gratuidade das coisas esquecidas de si mesmo. Ou uma cena num filme que me transmita fugazmente o mesmo. Ou uma por outra erecção que me faça imaginar um fuste para uma garrida cotovia. Queijo, vinho, outro livro de poesia, alguma pintura, nada mais me interessa. E nem alguns enxovalhos me salvaram.

E assim ao contrário de todos os meus amigos da época, no começo da “carreira”, fui desbaratando o sucesso, tornando-me indiferente às suas sereias, ao meu lugar entre os iguais. E tantas vezes vil, literalmente vil, no mais mesquinho e infame da vileza. Eles fizeram bem, eu também fiz bem, à minha maneira.

Só lamento que isso fosse às vezes tomado por afectação e distância. Na verdade apenas nunca quis com força suficiente o mesmo que eles – eu só queria tempo, cheguei a reunir com três ou quatro criaturas parecidas comigo para fundarmos um Clube de Procastinadores. Para podermos fazer durar os intervalos. Esta foi a única chave que quis no bolso – e conto esta história no conto A Reunião de Condóminos, de Cegueira de Rios, publicado pela Relógio d’Água em 1995.

Mas agora fiquei chateado ao verificar que sou um santorrão. Porque descobri-me destituído de qualquer apetência para o jogo (às cartas já eu sabia, sou o pior parceiro do king, daqueles que nunca decora os naipes que saíram e não se importa de perder para ver a felicidade no rosto dos outros). Tive um sogro que foi jogador, viciado. Era um drama na família, eu nunca o julguei, e troquei vários cravanços por algumas histórias, nunca me fizeram espécie os desvios. Um dia já eu estava em África fui a Lisboa e fomos jantar. Ele insistiu em pagar, puxou duma nota de 500 euros, botou faladura de doutor, e deixou o dono do restaurante à nora, sem saber como arranjar troco àquela hora. Rimos como perdidos com o semblante do dito. Apeteceu-me dar-lhe um beijo pela rábula.

Ele jogava pelo jogo, absolutamente, para ficar encalhado nessa esfera extemporânea do tempo, se lhe calhava ter a sorte de ganhar derretia imediatamente o carcanhol numa nova aposta, só para voltar ao fluxo do jogo. Sempre o invejei, mas nunca fui com ele. E nos bingos e slots machines nunca gastei um tostão mais do que havia determinado. Amigos meus perdiam o ordenado numa noite, apesar dos esforços vãos para os arrancar dali. A mim nunca tal apelo me arrebatou, apesar dessa febre ser genialmente descrita em Dostoievsky ou em O Tufão, de Conrad. A aposta é-me um desígnio estranho.

O que faço é por aluvião, as coisas vão-se acumulando e às tantas sucede a enxurrada. Por inércia natural, purga, ou porque a realidade dos estratos me mudou.

A ambição nunca me excitou. O riso sim. Mas a “vontade de poder” não. Nem as suas marcas de reconhecimento me aquecem, antes me arrefecem num desleixo profundo. Devo ser o único mortal que fez uma viagem de quase 3 meses por algum oriente – Etiópia, Yémen (o que eu gostei da Arábia Feliz), Índia e Paquistão – e que não tem uma fotografia que o ateste. Não levei máquina nem comprei descartável. Na sequência, escrevi uma série para televisão – Os Mares da Índia, com o inefável e roufenho Miguel Portas como pivot - mas não tenho qualquer exemplar da série. Dei, para me esquecer. Uma década depois, em Madagáscar, onde passei três semanas a dar um Curso de Guionismo sim, comprei uma descartável – mas já perdi as fotografias. E como eu gostei da ilha, se pudesse mudava amanhã. 

Nunca aspirei a ter carro, uma aparelhagem de estalo, uma viagem a Nova Iorque. Fui uma vez a Paris, a minha mulher insistia em passear comigo no Jardim do Luxemburgo. Mas meti-me nas livrarias, gastei três mil e quinhentos euros em livros, e a minha mulher hesita em levar-me again à cidade luz. Só no avião de regresso dei conta de que não tinha visto a Torre Eifel.

Deve ser uma mola que tenho avariada.

Se acaso me despedem a minha primeira reação é prazenteira, secretamente felicito-me porque irei ter uma semana de dolce fare niente. Só depois, por obrigação familiar, me faço à vidinha. Sem grande convicção. Se vivesse sozinho não me custava admitir o destino de uma personagem de Beckett, despojado e contente, apesar de vagamente enredado na inquietação de saber quem fala no que falo.

Mas agora fiquei chateado com o que li sobre o jogo porque segundo a dicotomia nietzschiana, faltando-me o impulso para essa embriaguez dionisíaca, só me resta ser um moralista. Ora merda, haverá forma de me perdoar esta pessegada? E a minha mulher gostaria que eu fosse um bocadinho mais ambicioso. As minhas filhas gostariam que eu fosse um bocadinho mais ambicioso. Só eu me sinto um ensonado barbaramente ridículo por me deitar a dormir sempre que me apanho uma boa cama à mão – e aqui não há enguias, merda. Não haverá por aí quem me empreste umas anfetaminas? É que se não for isso, mesmo santarrão, mesmo moralista, temo que vá encolher os ombros, bocejar, e esquecer-me de dar a sentença.

5 comentários:

  1. Adorei. Um belo intervalo antes de ir acabar A Maldição de Ondina. Grande livro, António Cabrita. Porque não publicá-lo por cá na Abysmo?

    Bj. Aliete

    ResponderEliminar
  2. Respostas
    1. pois é, é uma contradição infame a minha, um parasita sem ambição...

      Eliminar
  3. Adorei ler estes textos, poesia diária.
    gostava de escrever as maravilhas que são os seus textos.
    beijos desde este longe Porto azul do mar.
    Ana Ulisses

    ResponderEliminar