Não se trata de ver mas de dar a ver. No poema. São coisas nos antípodas. Mostrar o que o quotidiano nos dissimula, o que nos é escondido pela inanidade da nossa vida, como no espantoso verso de Robert Juarroz: «como uma árvore que tombasse do fruto». Quem o lê, diz imediatamente, que coisa estapafúrdia, mas se repararmos que a bactéria que a adoece entra na árvore pelo fruto, que a mais nobre árvore genealógica tomba quando fica nas mãos de um filho toxico-depente que tudo estorrou, percebemos como a metáfora tem um quilate científico, e que nós é que a rejeitámos porque pensamos quadrado.
Ele está quite. Que bela expressão. Já não me lembrava dela: estar quite, ficar quite. Dar uma boa canelada por baixo da mesa, e ficar quite. Apontar a fisga ao olho azarado do árbitro e ficar quite. Ir para a cama com a mulher, depois de verificar que a conta no banco continua a negativos e ficar quite. Comer marmeladas e os dentes reagirem em guinadas: ficam quites. O Quintino é um amigo querido que não vejo há algum tempo – estará quite?
O cabelo berrantemente loiro sobre uma tez de bronze, assenta-lhe como um legume. Mas lá fez negócio, o carro parou, a janela baixou, negociaram, e ocupou o lugar do morto.
O curioso é que aquilo que o atraiu, a espampanante cabeleira, vai ser tirada, assim que cheguem ao quarto: será uma foda com a cabeleira mole (como os relógios moles de Dali) a escorrer para fora da mesa-de-cabeceira.
Embora por um instante tenha lucilado na pradaria, como a labareda no genérico do Bonanza.
Leio Rilke: «Uma obra de arte é boa desde que nasça duma necessidade. É a natureza da sua origem que a julga». E o primeiro impulso é dizer ámen, a gente concorda com tudo o que um génio diga, n´est-ce pas? Reespreito a frase com um olho, depois junto a outra pupila, já num gesto de impertinência, e não só hesito diante do juízo como agora me parece de um maniqueísmo gratuito, eivado de um snobismo absolutamente terrorista. Há centenas de obras fantásticas que resultaram de uma encomenda mas cujo ADN mudou a meio do processo, porque o autor acabou por se entusiasmar e insuflar de um suplemento de alma a matéria da criação. Já nem falo do cinema, mas metade da obra do Camilo saiu de encomenda, em folhetins, como tanta coisa em Dostoievski, ou no argentino Roberto Arlt. Darei sempre Graças a Deus (que, como eu, é ateu) por Dias Gomes ter tido a encomenda da telenovela O Bem Amado. E creio que Neruda ou Aragon ou Maiskovski trabalhavam sob encomenda do seu daimon pessoal, ou do seu alter ego, como quiserem - e nem sempre saiu mal, a coisa; às vezes acertam mesmo no alvo.
A segunda parte da frase: «É a natureza da sua origem que a julga» ainda me choca mais, pela venalidade que atribui a todas as obras que não tenham saído da necessidade. Nenhuma necessidade impeliu Queneau a escrever Exercícios de Estilo, unicamente o gozo, uma gratuidade destituída de qualquer determinismo – nem sequer o da necessidade. A grande arte de Chaplin não era alimentada muitas vezes pela necessidade mas pelo constrangimento, como aliás acontecia com muitos autores de Oulipo: Calvino, Pérec, Roubaud. Magnífica literatura com uma origem suspeita, por projecto, e não por necessidade.
Ora, bardamerda para o Rilke. Amanhã reconciliamo-nos. Hoje estamos assim de costas voltadas, como duas vacas sentadas sobre os quadris. Quero dizer, uma vaca e um vitelo.
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